04/10/2008

CONTAGENS PARA UMA ANATOMIA AINDA RESIDENTE – (e)numerações

Viseu, tardes de 2 e de 3 de Outubro de 2008


(Tenho 44 anos.
Continuo a contar.)

*

(A minha pessoa não conta.
O meu tempo, sim.)

*

Feridas por todo o corpo: larvas
e palavras.

*

Há uma etnografia no coração,
um folclore oleiro nas mãos,
a infância picada de nervos nas plantas dos pés,
o manso boi na água dos olhos,
o figo nas tetas das mulheres,
a seda que o prepúcio sela de seiva na glande,
a flor do cuspo e a da delicadeza,
a bondade hidráulica do baço,
o fígado todo grená como um beijo coagulado,
a porcelana das unhas,
a óssea meia-lua das unhas,
diferença, aflição e agonia das tripas
(por onde começar a morrer),
o, mais que meu, eu-corpo.

E nenhuma alma e nenhuma salvação.

*

Mais bem quis e quero amar-te, ó vénus
doméstica minha, entre linhas e agulhas
cirandando, toda, como é de mulher
próprio, atenta ao labiríntico rumor da
casa.
Bem andou quem Vénus chamou a um planeta,
que planetária é toda a mulher – e toda urbe
e orbe toda.
Sideralmente amar eu quis e quero, daí.

*

O peixe grande que ora assa no parque,
entre árvores e volitivos gatos, oferece em
carbónico perfume do esplendor da sua
natação.
Fixa comigo o que importa, tudo o que
importa: o parque todo, um rio perto,
o sol fervilhando de aves lentas
(enumeradoras da inumerável máquina de crepúsculos),
esse alguém que nos ofereceu este peixe
e este lume e este entardenoitecer
sem remissão nem amargura nem amanhã.

*

Neste instante me guardo.
Componho.
Penso na palavra linho,
que de tão bonita me parece o masculino de
linha:
verso também,
portanto.

Neste instante quase me salvo.
Agora não é tão preciso morrer,
grato, caduco e cadente, a exemplo
das folhas que das árvores sobem
ao chão,
como eu,
se não compuser.

Componho? Mais recolho do que componho.
Tudo em torno fraseia:

o mendigo cuja melancolia é uma vinha de nervos,
as telenovelas barbitúricas para velhinhos de asilo,
o largo castanheiro que apetece abraçar,
os nomes que no campo-santo individualizam o esquecimento,
as portas de vidro onde o nosso rosto nos olha,
o monossílabo cego de uma união carnal,
a iluminura perfeita do ferreiro em sua forja,
o chilrear das viúvas ante o bule de chá,
os escritos sem palavras nas janelas para arrendamento,
a palavra linho e a palavra linha,
a macrocefalia escaravelha do motociclista,
os cães passeando homens ao anoitecer,
a desmesurada tristeza dos fins de festa,
a rapariga vestida de verde(e) lendo Graham Greene,
o figo de uma teta coroado a roxo por baixo,
o promontório que todo o cavalo é,
uma praia determinada noutro ano qualquer,
as rodas dos carros sublinhando as mãos dos bois,
o azul milenar do gelo do Norte,
o coração a sul de toda a melancolia,
a idade dos que amamos volvendo-se madeira,
o caudal de cometas fogueteando a seda da noite,
um poeta na taberna como um bicho-da-sede,
os instantes de guarda,
os frangos expostos e nus como cicciolinas,
os rapazes de cabelo que arde ao sol antes do futuro,
o futuro portátil de toda a criança,
o outro mendigo, afagador de cães e de portas de vidro,
a babilónia aromática dos mercados,
o salitre do idioma dando à costa na boca,
a cotovia castanha dos olhos da nossa Mãe,
o fulgor paratlético dos bêbados cantores,
o azeite que pavia a escuridão,
o teor ambulatório da condição
(qualquer condição),
o imperialismo francês jardinando palacetes,
o olhar abolidor de passaportes,
a gnosia como derradeiro livre-trânsito para a vida,
os cinquenta e quatro quilos de uma adolescente mais leve do que o ar,
a terra vista do espaço e o espaço visto da terra
(as portas de vidro, as portas de vidro),
o milagre de uma palavra justa sob a figueira,
o fadista reumático cheio de ciúmes e coisital,
a prece íntima perante um rio perto,
o perfume de um peixe e do gesto que no-lo deu,
uma galinha cozendo devagar em panela de ferro,
a lenha que a torna molusco e da família,
um bosque crivado de retratos num sonho,
o sonho de uma rainha pobre toda a vida costureira,
o ramalhar dos álamos de cartão no teatro,
a jóia de um cuspo à flor da água,
a lotaria orgânica dos cancros nas melhores famílias,
os bailes d’antigamente, em que o pasodoble e a ginja,
a portugalidade profunda das casas fechadas,
as grisalhas enxameando salões de coiffeur,
os partidos políticos e a visceral filhadaputice do género humano,
os romances de Henry James,
um sino tornando bronze o coração a quem o ouve,
a tardinha chiando doçura nos ossos do lavrador,
os avós clonando amor de amor nos netos,
o florilégio das procissões cheirando à falta de Deus,
como que se (de)volve musselina: a mulher saciada,
as costas do nadador olímpico golfinhando azuis e tejos,
aquelas cornetas compridas dos filmes bíblicos,
o Charlton Heston e a National Rifle Society
e os dez mandamentos e a merda,
a renda vegetal do Japão a amanhecer em névoa,
Wenceslau de Moraes lá, entre rendas,
os desastres de viação cutelando famílias,
os anos roçando-nos como a mato,
os ofícios, os tios, o pequeno comércio, as pontes,
o meu amor inteiriço e mole qual coágulo,
a cona das bebés fendendo a rosa,
qualquer rosa: simultânea pimba e écloga,
a promessa feita ferro na honra da palavra,
o embuste, o sortilégio, a mesa de tríplice pé-de-galo,
a Nicole Kidman lendo Greene, de verde(e),
a fonética ortoépia de David Coverdale,
a argúcia instintiva dos pássaros,
a gordura pré-republicana do último Rei, o Caçador Caçado,
o lhano boletim da morte do Irmão
(também morrerás, sossega, garantia o telegrama),
não nos adoecer o amor quando adoece quem amamos,
o nosso corpo: casa preliminar tanto de morte quanto de vida,
a estirpe bacteriológica do destino,
a cárie azul das fadistas,
as danças tristíssimas no mar-alto dos cruzeiros
(quase todos com muito dinheiro, muito cancerígenos),
o afã rumoroso dos vendedores de bananas,
a tessitura hemogramática dos ramos das árvores,
a árvore pulmonar na brisa do arfar
(pode ser do amar),
saber agora mesmo que morreu o Dinis Machado:
viva o Dinis Machado!, viva o rapaz!,
viva Mister DeLuxe!, viva Austin!,
viva Dinis Machado, viva!,
revivam também a deambulação predatória de António Botto,
a vulva métrica da Florbela Espanca
e a íris de Osíris no lótus do escaravelho
(cabeça-de-boi-cabeça-de-falcão-cão)
e Akhenaton, o apóstata de Amon,
seu longilíneo pescoço de tuberculoso,
seu crocodilo dândi dando o rabo ao sol,
lunar assunto hoje-muit’-em-dia de bares-gay,
viração do vento e luar prateando pessegueiros,
famélicos actores agindo revoadas,
facturas e divórcios azulando rodapés de casas,
e a vitrificada ternura autómata,
ouvindo sinos no bronze do coração,

neste instante que me guarda de toda a salvação.

3 comentários:

Manuel da Mata disse...

Nesta minha peregrinação dominical, era inevitável passar por aqui. E Sou sempre surpreendido.
Hoje, não só com a beleza dos poemas, mas também pela evocação do Dinis Machado e pelo relembrar das personagens do "QUE DIZ MOLERO". Já tenho mais uma dívida para pagar.
Abraço.

rff disse...

Gostei das palavras escritas...

Saúde

ao saber dos dias disse...

só pode ser um problema do pc para esta ausência. agradeço muitas, poucas, algumas palavras...

Canzoada Assaltante