31/05/2007

Direitos de autor agitam teatro ACERT de Tondela

Hoje, 31 de Maio de 2007, no Diário de Notícias (e em www.dn.pt)

Direitos de autor agitam teatro ACERT de Tondela
AMADEU ARAÚJO, Viseu

O escritor Daniel Abrunheiro acusa José Rui Martins, director artístico da Associação Cultural e Recreativa de Tondela (ACERT) de lhe ter "roubado a adaptação" dramatúrgica que fez de um texto do escritor colombiano Mário Lamo Jiménez, Andar nas Nuvens, que tem estreia marcada para hoje, na abertura do Fintinha- Festival Crescer com Arte . Segundo Daniel Abrunheiro, o convite para fazer a adaptação do conto de Jiménez vinha armadilhado. "Eu transformei a história em 15 canções e após ter revisto, corrigido, aumentado e melhorado as falas da peça, quando recebi o convite para a estreia, vi que o texto e a encenação são atribuídos apenas a José Rui Martins". Afastado da co-autoria, Daniel Abrunheiro decidiu então "proibir a ACERT de levar à cena a peça" por si adaptada. "Recuso ser passado para segundo plano numa obra que foi trabalhada maioritariamente por mim", garantiu em declarações prestadas aos DN. Abrunheiro não esconde a revolta já que, segundo afirma, "quem ler a ficha técnica fica com a impressão de que o José Rui foi o autor das canções, quando tal não é verdade". O escritor escreveu mesmo a Mário Jiménez: "Fiquei estupefacto quando verifiquei que também ele pensava que a adaptação havia sido feita apenas pelo José Rui."Daniel Abrunheiro, que desde 2005 tem colaborado com a ACERT, afirma ainda que "nunca mais" quer "colaborar com o director artístico" da companhia de Tondela, a quem acusa de ter "uma ânsia de protagonismo desmesurada". Opinião diferente tem o director artístico da ACERT: "A adaptação teatral é minha, o Daniel apenas escreveu uns poemas, mas perante a sua carta vi-me forçado a reescrever novos poemas sem a colaboração dele." A estreia da peça não estará em causa. "É uma situação com a qual não contávamos, visto que sempre salvaguardámos os créditos do Daniel Abrunheiro como autor dos poemas", conclui José Rui Martins.

30/05/2007

Nações à beira de Junho






I

Claro que a língua é uma temperatura.
Claro que a língua é de vagar.
Falamos em câmara lenta.
Rápido, só o olhar.
O dia virá
que não
odiaremos
já.
O mesmo amor
cederá resina
ao nascente damasco:
a oblata morte.
Entretanto, é tempo de Bobby Darin, de António Botto.
O cantor e o poeta, irmanados pela baba sonora da publicação, compreendem-nos.
Compreendem-nos no sentido de conter-nos: cantamos e dizemos sempre, mais regelada que mais acaloradamente, uns, outros.
Memoro para a frente,
na tarde macia como uma flanela,
como um preservativo.
A febre reumática levou, a médio muito curto prazo, o que cantava.
Foi atropelado o gostador de rapazes.
À mesa, perante os corpos expostos, não cedo à tentação mortuária.
Leio Reportagem, de Botto, ouço Beyond the Sea, por Darin.
Eles dois mexem as patinhas vivas, insectos reacesos pela brisa vagalume.
Brando incêndio branco, fora de casa, tomou a povoação e sua montanha exemplar.
As tílias e os cedros farfalham, gozosas, a claridade.
Meu glauco coração em
as mãos escritas a sal e a vinho:
por um lápis.
Os outros corações glaucos,
que reconheço à distância,
aferventados no caldo das
terras estioladas do País:
nações à beira de Junho.
Salvei ontem, da mortífera brincandade da minha gata, um aranhiço apeado na alcatifa. A felídea, usurpada do direito de matar que lhe concede a auto-pedagogia, radiografou-me de alto a baixo. Senti (nela, dela) a impotência do tigre de miniatura. O aranhiço, protegido pela vidraça de correr da varanda, correu da varanda para o jardim, onde há serpentes.
Entrementes, ninguém telefona – e também isso é bom.
Um taxista muito velho daqui contou-me que, certa ocasião, quando os sanatórios da tuberculose davam muito, teve de levar um doente terminal no táxi dele. Tão doente vinha buscá-lo a família, que no tejadilho do táxi seguia viagem, já e também, o caixão correspondente ao freguês.
Isto é tudo verdade:
a claridade nos cedros e nas tílias,
a temperatura do coração idiomático,
o caixilho fértil das ancas da rapariga tolinha que chora rosas quando algum casado a despreza.
Ando aqui nos legos (no logos): araucária, litote, avania, nimbo, rizofagia, maniqueu, estola, objurgação. Palavras que pirilampam na noite branca que toda a página é: uma ventania de cordas desfechadas pelo arco do lápis.
Maravilha, langor, hipotálamo e internet: substância e rede; e luz e alma.
Ao balcão, de busto-rodin pingando para o jornal desportivo, o homem barbado toma um café que arrefece como um mau verso. Nisto, o dono velho parpadeia décadas, consulta um totoloto parecido com a vida por não ter dado nada, boatarda os presentes e dissipa-se no ar como uma senhora-de-fátima-roger & over.
Darin e Botto, sensualões, curtem a rara-facção do ar.
Três escalões etários pousam e pombam na mesa ao lado.
A de costas para cá (segundo escalão de progressão na carreira) reveste-se de camisola cor-de-laranja que não lhe alcança o cós, desalcance de que resulta a exposição de um cóccix piloso e dermóide. De fina ganga perneja até ao descambo de cetinsapato agudo. Cabeleira ripada a madeixas químicas.
António Tomás Botto, 1897-1959-2007.
Walden Robert Cassotto, aka Bobby Darin, 1936-1973-2007.



II

Se puderes, não tussas sangue.
Junho não demora, umas revistas mais – e está aí Junho.
Se podes não acreditar em Deus,
não credites Deus.
11 de Maio de 1994 não acontece sem generosidade:
o fogo.
11 de Abril de 1983 não acontece sem ele:
a neve.
A Grande Bicicleta – o Tempo – roda seus
casamentos ínvios,
uns contra outras,
na tua terra como em todas,
o pasteleiro contra a dactilógrafa,
a merceeira-filha contra o doutor de educação física,
o pálido assistente social (aliás homossexual) contra
o motorista do autocarro (aliás mulher).
Todo este Junho a que me aporta o coração
– e a varanda meteorológica da melhor
das casas que já ocupei.
Tinham-me avisado:
Maio desce, a noite sobe.
A noite conta dias.
Sobidesce.
Entretanto, senhoras admitem
vasos comunicantes: filhos,
quimioterapias, revistas rápidas
como o olhar.
Se olho as ruas de Lisboa
como a tábuas tombadas? – olho.
O Tejo não é, aliás e ali,
rio, mas colchão de
economias e indochineses subassalariados
por noruegueses matadores
de baleias.
Tudo isto:
constante, contemporâneo,
constantemente, contemporaneamente.
E se por milagre te acudir
a bela torre loura
cuja carnação estoira
alfazemas púbicas,
se por milagre te chegar
ela com isto

– Olha, The Waste Land e os Four Quartets

tu não dirás, a essa senhora,
qualquer coisa
que te comprometa,
que só nas entrelinhas,
que só,
só.



III

O bom homem
limita a respiração
ao ar que lhe deixam.
O homem bom
abre janelas,
manda calar
a barulheiripópe
do andar de baixo
– e depois
sopra
da ponta do cano
o fumo da pistola
e assopra sem retalho
sobre a rapariga deitada,

dá-lhe a luz de lado,
a ela,
parece Vermeer,
ele.



IV

O mais é que
terei de trazer-vos aqui.
É onde, também, decoro:
14 de Agosto de 1980
(Alberto),
1 de Maio de 1971
(Lucília, Graça, José, Carlos).
Enquanto a vida mexe
e é segura
e a flora cresce
da agra cultura.
É preciso ar.
É preciso liar.
É preciso taliar.
É preciso retaliar.
Contra todo o relatór&contas
dos bancos e das seguradoras
publicados em suplemento
nos jornais
ditos sérios
pitos sírios
assírios e sumérios
e a Mesopotâmia
quer dizer
entre-rios
Tigre e Eufrates
e por assim dizer
é
interamnense.
Aqui.



V
De outras parolices me
escusarei hoje.
Tenho (e trago) referências.
Cozo de
vagar
a carne de vaca
(com prumo de mínimo azeite).
Deixo-a,
à vaca,
sozinha
e pedaçada sobre tábua
de madeira-pão,
a que acudo com guarnição
de batata, cebola, cenoura
e grão.
Deixo ferventar a
tenra vagem
em caldacarnosa
passagem.
Rejunto a chicha.

(Entretanto, mijo.
E,
da picha,
helicopterarei
a quarentona downloadada
de eréctil saudade.
Depois,
lavo as patas
para voltar
às batatas.)

Isto passa-se.

À noite, prontinho:
bloco ao lado,
interneto o composto poema,
Junho não tarda
aí.




Texto: Caramulo, tarde de 28 de Maio de 2007
Fotografia: Caramulo, 20 de Maio de 2007

Ontem não é Hoje

Ontem não é hoje. Não vou deixar que seja.
Ontem, vivi um dia um bocado para o amargurado, para o raivoso.
Até mandei uma rapariga que não conheço para um sítio que conheço bem de mais.
Não tenho quaisquer pretensões a protagonismos tolos.
Quero que se lixem as fichas técnicas de um nome só.
O meu Pai foi um homem bom, mas não vou imitá-lo na sua humildade cega, a qual teve por consequência que toda a vida lhe comessem as papas da cabeça.
Não vou ser roubado.
Darei a quem mo pedir.
Não aceitarei esmolas.

Os comentários ao "post" anterior revelam que há quem me (re)conheça para além da amizade.
Não conheço Filipa Alexandre nenhuma. Nem quero conhecer.

Marioneta? Não sou.

Posto isto, vou hoje continuar a vida: a escrita, a cantada, a falada, a calada.

Pago um café.
Venham daí.

29/05/2007

Canções para Mario Lamo Jiménez

As canções seguintes (que tiveram a boa sorte de ser musicadas pelo grande Fran Perez e a má de terem sido entregues de bandeja a quem as não merecia nem merece nem vai ter; e não vai ter, quanto mais não fosse, pelo sentido do ridículo: 15 canções num espectáculo de 45 minutos, média de uma canção cada 3 minutos, e o texto é "dele"... ) são para o escritor colombiano Mario Lamo Jiménez. E são para a minha Mariana, voz pura e genuína e artista e tudo o que há de lindo neste (feio) mundo.


Canção da Imaginação

Quando as palavras dançam
No baile rodopiado
Parecem setas que lançam
(malucas, nunca se cansam)
um voar nunca voado

Se olharem dão por isso
Que as coisas às vezes são
Não aquilo que parecem
Mas fruto da imaginação

Biscoito pode ser osso
Se ao cão lhe convier
Como a cabeça pescoço
Se ela aí se esconder

Uma minhoca é dragão
Desde que traga um archote
um berlinde vira lua
sem medo de ser fracote

Um leão é uma formiga
Quando se mete na toca
E uma bola fica lua
No focinho duma foca

Crocodilos voadores
Não são nunca aflição
Aflição é ver a cores
A mais negra escuridão

Imagina, fica em terra
Vê os bichos e os países
O olho muito ele berra
E as bocas são narizes


De infantes os destinos
São pepinos destinados
Homens já foram meninos
A meninas entregados

Fruta-cores, furta-estrelas, furta-fruta
Sempre a andar
Maravilhada imaginada
Começa por escutar

Já que entrámos na viagem
E para saber os porquês
Vamos iniciar a descolagem
Com a frase: Era uma vez…

A Constituição das Duas Palavras

Nãomesqueças é a terra
Coça a boca com o nariz
Venha a paz ou venha a guerra
Pensoenti é o país.

Um velho homem ensina
Há um país imaginado
P’ra ser menino ou menina
Basta termos viajado

...

Às vezes, o céu é oceano
Voam peixes siderais
Isaura e Valeriano
Irmãozitos fraternais
Passaritos do jamais
Piam o piar humano
Passaritos animais



Canção da Chuva Tonta

Tinga, tinga, pinga, pinga
Tuca, tuca que é tucano
Chove leite e café
Chove um dia, chove um ano

Passaritos ananases
Chove tanto, Deus-a-dá
De voar são tão capazes
Passari’ Ananá’
Passa aqui, passa acolá
Chove tanto, Deus a dá

Lagartamos a maçã
Pa’ larva não falta nada
Palavrinha de manhã
Faz a noite acabada

Dios-te-dé, Deus eu te dei
No castelo nuvens altas
Tu rainha e eu rei
Faço falta, tu me faltas

Vaquinhas de algodão
Café em rama chovendo
Maravilhas coração
Maravilhas que só vendo

Canção Alucinação

Tango frango que fandango
Corta sumo de morango
Ando paro não desando
Quatro mil três vou contando
Sol e lua os dois na rua
Nua voa a libelinha
Que maluca é a cabeça
Direi quanto me apeteça
O esquecer e o lembrar
São mais fáceis de rimar.
Sol e lua
Um vestido, a outra nua
Tango frango que fandango
Hei-de um dia acordar
Tão quente qu’ei-de gelar




Música do Castelo de Gelo
Fora da boca são vapor
As palavras congeladas
Nem parecem ser faladas
Parecem só sentir dor
De ter sido afastadas
Por magia – faz favor!

Parece que a boca tem
Céu da boca tão nublado
Que o bafo vai e não vem
Dar sentido abafado
É magia:’tá falado!



Canção da Magia
(cantada potencializando o eco da voz)

Guá guá água characa
Eco dá, dá espelho bom
Que o som volve e volta a casa
Que bem bom é o som bom

Palavras saem da boca
São coelhos de cartola
Magia, palavra louca
Tira tiros de pistola




Canção à Lua

Amor gela sem queimar
Janela é vidro espreitado
Ferida que nunca vai curar
Fogo ardido tão gelado

Quem tiver de chorar, chore
Quem tem dor, chame-lhe sua
Há quem lá na lua more
E tenha lá casa e rua

Que a própria lua chore
Vê-se no Janeiro aberto
Quando a rosa nos demore
E o longe nos fica perto

Nuca faças mal à lua
Que ela mal nunca te fez
Sempre a lua que é só tua
Aparece mês a mês

Parece de prata fria
Tua vida, era uma vez.





Lágrima

Canta a borboleta
Dos teus olhos bebo água
A mágoa quero secar
A lua que trouxe, trago-a
Água doce de luar

(Crocodilo canta)

Saem tantas maravilhas
Filhas são gotas irmãs
Oceanos, tantas ilhas
Tantas noites e manhãs

Quando os olhos são só velas
Pingam cera a escorregar
Bolhas depois partem delas
À lua hão-de chegar

Quem chora mansinho sente
Maravilha! É só sua
Que só chore quem bem é gente
Lágrima plantada na lua

Namoro Lunar

O coração pesa um quilo
Pesa a lua muito mais
Lágrimas de crocodilo
Borboletas siderais



Música da Cidade das Toninhas

Espadachins e espadadas-peixes
Vai tudo de espadeirada
Tartaruga, não me deixes
Não deixes sem ser por nada

O Peixe-Semáforo
(electrificado)

Somos peixes, cauda e rabo
Com airlerons laterais
Está vermelho, ó diabo!
Parem lá, não sigam mais.



Coralina, nossa vida
Cor das águas mais correntes
Para a viagem ser cumprida
Tem de ter cores diferentes

Castelo, casa marinha
Onde o vento é a maré
Esta história tua e minha
É entrar, ver como é!




Rap Ciclone
(rap)

Esta é nuvem ciclone
Com a sua forte aragem
Engole feita trombone
O que apanha na passagem
Torvelinho olho feio
Cai tudo o que encontrar
Olho do polvo no meio
Fura cão e fura o mar

Gargalhada sem Dó Maior

Há sítios para coçar
Na memória, nos joelhos
Que quem souber gargalhar
São sempre novos, mesmo velhos

Na juntura do sorriso
No sovaco capilar
Riso não é choro, é riso
Porque rir é do pensar

Ninguém chame tolo ao ridente,
Não faça essa confusão
O choro vem do lembrar
O riso, do coração

Nos pezitos as areias
Fazem coçar o artista
Chorar tem cor de jornal
Rir tem cor de uma revista


Voar com os Pés no Chão

Incha, incha, pincha, pincha
Senta, sente o algodão.
Se uma nuvem relincha,
Ladra uma saca de pão.


Quem quiser vir ver o céu
Venha que está convidado
Traga roupa ou venha ao léu
Nunca fica constipado.

Coisa é de maravilha
Mar e ilha e oceano
É fazer da noite a filha
De cada dia do ano.



O Cometa da Sabedoria
(Música Final)

Os cometas são de giz
Nos céus da noite traçados
Quanto é bom ser um petiz
E ouvir contos bem contados

Já ouvimos dos antigos
Coisas para recordar
São coisas depois para os livros
Antes disso para guardar

28/05/2007

Para

A luz é tanta, que a manhã foi a mais íntegra narrativa de si mesma.
Agora, a tarde entra com a sua carpete nova, os seus estendais brancos.
Logo, a noite recolherá os animais amansados que todo o dia
revisitaram a terra, todas as horas carregaram água e papéis.

Eu leio a luz para escrever a sombra.




Caramulo, início da tarde de 28 de Maio de 2007

Só para Nós Todos



O sol nasce de uma maneira tão pública
que todos privam com ele a sós.


Caramulo, manhã de 28 de Maio de 2007

27/05/2007

Caguei e Andei – Apontamento de uma Filha-de-Putice para que Conste


Que a auto-ilusão é dos pilares da sobrevivência, nunca duvidei de.
Em domingos como o de hoje, então, é total a transparência da asserção. Uma moinha de água absolutizou o dia. Posterizada pela janela do escritório, a árvore grande abre todos os braços ao chuveiro pulverizado. Na cozinha, ferve a panela do almoço. Pus Chopin a tocar, naturalmente. Às cinco da tarde, Sporting e Belenenses disputam a final da Taça de Portugal.
Da pasta, chama-me nomes feios o romance que ando desde Novembro a ressacar. Experimento coisas tolas e inofensivas: por exemplo, tocar o teclado do computador ao andamento dos Nocturnos que ouço.
Saímos, eu e a Sofia, para tomar um café na manhã já tardia. Caí na asneira de comprar o jornal (um qualquer). Fiquei deprimido: a rafeirice dos ministros, o aniquilamento dos direitos humanos em todas as suas vertentes (laboral, existencial, todas), a chilra flama de vaidades dos jet-nomes, o portugalinho burro orgulhoso de sua mesma burrice. Deprimido. Tão cedo, não volto a lixar um euro e tal em papel que nem para enxugar os entrefolhos rectais serve.
Tenho um livro começado ontem à noite, no entanto. Em tradução portuguesa de Aníbal Fernandes e edição da Assírio & Alvim, Além, de J.-K. Huysmans, já cumpre, à página 77 em que vou, o que prometia de início: ser uma coisa muito bem escrita e muito companheira da alma. Por ser empréstimo do meu cunhado, é ao Luís que agradeço.
É com bom humor, no entanto, que lido com o mau humor próprio. Há uma maneira muito popular de o dizer bem: caguei e andei. Mesmo que, recentemente (muito recentemente) me tenham feito esta filha-de-putice: tendo sido convidado (e pago) para escrever uma dúzia (13 até, salvo erro) de canções para uma peça de teatro, escrevi as canções e ofereci-me para rever, corrigir, aumentar e melhorar as falas. A peça, do âmbito infanto-juvenil, era adaptação de um conto estrangeiro. Pois bem: do cartãozinho de convite para a estreia da peça (que, despudorada e asininamente, me apareceu ontem em casa) não consta a mínima referência à efectiva (tenho testemunhas) co-autoria que prestei. É certo que eu já andava desconfiado. Fartei-me de pedir o envio por correio electrónico da fixação dáctilo-informática final. Nada. O gajo não ma mandava. Nem mandou. Estava muito ocupado a passar pelo que não é (nem nunca foi, nem nunca será): autor único. Ou único autor. Bardamerda. Até me faz sorrir de cristalina comiseração e de pura cristandade: gosto de ajudar os pobres de espírito. O Governo não faz nem mais nem menos que este(s) gajo(s): rouba e moraliza.
Enfim, tenho Chopin e tenho Huysmans. Com um ando, com o outro cago para o “autor” daquilo que é meu.


Caramulo, tarde de 27 de Maio de 2007

26/05/2007

Índigo-da-china

Henri Cartier-Bresson, México, 1963

Não tocarei hoje qualquer dos fantasmas disponíveis
da minha cidade privada.


É sábado, foi sábado, houve pouca luz
para tanto pedido.



Anoitece a partir das árvores, agora,
a tinta-da-china alastra ao índigo.



Tudo é rápido.


Do parque escorre ouro e húmus,
húmus e ouro tomam a estrada.



Animais atropelados pontuam o avanço
do marcador.



Desce-se a encosta, o ar cheira
a fumo e a laranjas.



Chamaram-me aqui para
este trabalho.



Deixo-o feito, talvez
os fantasmas venham recolhê-lo.



Caramulo, anoitecer de sábado, 26 de Maio de 2007

Agora Aberto todo o Dia também ao Sábado







Agora Aberto todo o Dia também ao Sábado
(Sonetos, Família, Londres, Marés e Janela com Fruto)



I. Três Sonetos



1
A minha vida nunca me deu lições.
Tirei dela ilações, quando muito.
Nada tenho perdido ou ganhado de jeito.
Umas doses de manteiga, uns pães.

Nada disto importa ou exporta.
Já são sossegados os cais do meu peito.
Conta a carnação se não fazer hirta.
O diabo a sete pinta o quatro e o oito.

Nada de novo debaixo do lençol.
De verdemorango picotam grainhas.
No fim venha a sorte, pàzada de cal.
A alma se alongue perdida por brenhas.

Do mais que não digo, por não no saber,
consta mais nenhuma coisa a dizer.



2

Já passei dor e bojador.
Nada de tão longe que se não leia.
A guerra do Laos e a da Coreia.
Mãepada e café se fizer favor.

Uma pouca dágua. Uma sombra subtil.
Um deixamirembora, milhão entre mil.
Um rasto de folhas flavas outonais,
milhão entre mil e cem e bem mais.

Cultivo dos anjos as penas aladas.
À beira do poço, menino insone
tropeça na morte, que o telefone
só dá p’ra deixar mensagens gravadas.

Do mais que não digo, por não no saber,
consta mais nenhuma coisa a dizer.



3
Olha seu mandasse nesta merda toda,
quão pior não seria todeste cocó.
O povo é ’ma merda, bem qu’ele se foda.
Mais vale, sendo um, seguir send’ um só.

Tu olhas em volta e voltas ao centro.
Dentro, tudo’ spelho, pimenta e coentro.
Daçorda não cheira alh’ e bacalhau,
quem tenha do bom não quer ter do mau.

Olha o teu primo, tua vilegiatura.
Vida dura os dois, os três, o diabo.
Começo e acabo, que a vida é dura
do cabo do olho ao olho do rabo.

Do mais que não digo, por não no saber,
consta mais nenhuma coisa a dizer.



II. Em Família

Alguns pais deixam cair violetas
como as ovelhas, caganetas.
São as frases que os filhos guardam,
são as frases que os cordeiros guardam.

O perfume da cozinha é todo mãe,
alguma mãe, certas cozinhíferas.
Odoríferas, inhas, mães, mãezinhas.
Algumas mães caem, violentadas violetinhas.



III. London, Whenever

Na longa street as gabardinas
chapéucocam frios alugueres.
O mais é coisa de meninas,
que tanto pós-guerra secou as mulheres.

Eu digo: o porquito na horta,
V1 e V2, berliner despair:
mas o que eu queria (a coisa ’tá torta),
aquilo qu’eu queria, er’ uma mulher.



IV. Marés

Vos tenho dado e recebido reciclado.
Marés vêm vão vindo virão.
Ventos dão nas costas agrutas abruptas.
Digo. Ainda. Meu avô: o relógio dele,
madeirac, ic, ac, tique, taquetc.
Sim, formosa.

X, Ch, Shiu!

Pára o Tempo!

Se, SSSS, cobra.

Meia cobra.

Obra.

SSSSS!

Eu digo.



V. Janela com Fruto

A janela ao lado está fechada.
Isso é normal, faz frio.
Vem vento do lado do rio.
Isto é normal e Portugal.

Sou o último fruto.
Sou o último fruto – e estou
estragado.
Já nem saio ao sábado.



Texto:

Caramulo, tarde de 24 de Maio de 2007

Fotografias:

a) Diurna: Caramulo, 20 de Maio de 2007;

Nocturna: Caramulo, 17 de Março de 2007

25/05/2007

Mal Empregado Dinheiro, antes Tivesse Comprado um Guarda-Chuva



© Henri Cartier-Bresson
Alberto Giacometti, Rue d'Alésia, sans date





Alguns homens ficam depois da chuva
depois de algumas mulheres
que não ficam.

A Natureza assim obriga.

Não sou
mulher
mas também
não sou
muito
de ficar.
Muito menos
de me ficar.

A Natureza assim rapariga.

Gosto
como toda a gente
de à noite sentir
o mar
de no mar sentir
a noite.
Mas passo a vida em papelarias
a comprar material para
escrever
e depois não
escrevo
depois não
vivo.

A Natureza assim castiga.

(Lamento todo o dinheiro de hotel que gastei contigo e com ela
não pelo dinheiro
mas por ti e por ela.)

Chovia que Deus a dava.

A natureza assim cantiga.

Etc.





Caramulo, tarde de 25 de Maio de 2007

ROSÁRIO BREVE - 1

Iniciei hoje, 25 de Maio de 2007, uma crónica semanal na última página de um dos melhores jornais regionais do País: O Ribatejo (www.oribatejo.pt). Muito me honrou aceitar o convite do director do semanário, Joaquim Duarte. A coluna tem por título regular Rosário Breve. Aqui vai a primeira.


Ruínas e Anjos


Há um ano (com seus dias e suas noites) que moro numa vila tão despovoada como uma cama de viúva séria.
Os habitantes são muito poucos, do que resulta terem-se tornado uma espécie de anjos ambulatórios. É uma gente, por assim dizer, ornitológica: não é raro surpreender um ou dois em cima de alguma árvore ou do ridículo sinal de estacionamento proibido.
Mas sou feliz. Sou. As noites são mais populosas do que os dias. A demografia nocturna contém a mansidão vigilante dos mortos, facto que, no mínimo, duplica o recenseamento local. Devo acrescentar que é uma vila de montanha. Até os habitantes da multitudinária lezíria admitem que uma montanha é o contrário da vida: por ser sempre a subir.
Durante meio século, a vila floresceu à conta da tuberculose. A estância sanatorial chegou a contar dezoito internatos, cento e tal médicos, mil e tal doentes. Por meados da década de 70 do século passado, a tuberculose acabou e a vila também. Um a um, os sanatórios foram abandonados.
Tenho por costume penetrar essas ruínas ominosas. Derivo em silêncio na espessura estancada desses aquários do Tempo: faço de peixe.
Faço de peixe, pelo que, quando regresso a casa, a gata me olha com um suspeito carinho alimentar. Se chove, vou à varanda e assisto à chegada ubíqua e diagonal da água. O parque da vila, de árvores negras de tão verdes, suporta a chuva com uma resignação pessoal.
O mais certo é que, nesta ou naquela árvore, esteja algum anjo de asas encharcadas e quase tão feliz quanto eu.

24/05/2007

Revisionismo Emigrocolonial com Peixe a Assar

Porque
eu e o Zé Hermano Saraiva
somos praticamente
tucá-tulá
em conhecimentos de
História de Portugal,
eis aqui este

Revisionismo Emigrocolonial com Peixe a Assar

Um relâmpago rasgou o cetim nocturno.
Tranquilo, o antigo recolheu ao lar.
Para a ceia tinha um peixe diurno,
um peixe bonito bem bom de cear.

Umas folhas de couve, um nabo maduro
bolhavam ao lume com pedra de sal.
Tal qual no olvido, assim no futuro
se ceava e ceia num tal Portugal.

Viúvo sadio, ex-luxemburguês,
o antigo foi jovem, petiz português.
’61, emigrou, cavou da colónia:
Angola não ia p’ra ele ser Polónia.

’39 nascera, sem quê nem porquê.
O povo não sabe, a gente não lê.
Legume cozido e peixe a grelhar.
Tranquilo, o antigo recolheu ao lar.


Caramulo, noite de 23 de Maio de 2007

23/05/2007

Ruy Belo sobe à Montanha Mágica nº 12


Na minha juventude antes de ter saído
da casa de meus pais disposto a viajar
eu conhecia já o rebentar do mar
das páginas dos livros que já tinha lido
Chegava o mês de maio era tudo florido
o rolo das manhãs punha-se a circular
e era só ouvir o sonhador falar
da vida como se ela houvesse acontecido
E tudo se passava numa outra vida
e havia para as coisas sempre uma saída
Quando foi isso? Eu próprio não o sei dizer
Só sei que tinha o poder duma criança
entre as coisas e mim havia vizinhança
e tudo era possível era só querer
Ruy Belo é o poeta exclusivo do programa de logo, emissão 12ª do Montanha Mágica. Começa às zero horas, vai até cerca das duas da madrugada de quinta-feira, 24 de Maio de 2007. Quatro são os poemas de Ruy Belo a que a Sandra Bernardo dá voz.
Alinhamento musical da edição 12: Monty Python (ah sim, logo a abrir...), Frankie Miller, a divina Amália, Monty Python outra vez (ah pois, tem de ser), o rei do baião Luiz Gonzaga, um dueto precioso de violinistas - Yehudi Menuhin com Stéphane Grappelli, o catalão Joan Manuel Serrat, mestre Astor Piazzolla, Georges Brassens, Tori Amos com Robert Plant e vice-versa, Léo Ferré, João Gilberto, Liberace (sim, o pianista daqueles fatos e daqueles candelabros quítches, mas tocando muitíssimo bem o Moon River), Everything But The Girl, o grande e malogrado Sérgio Mestre, Ivo Papasov (quem?, um clarinetista búlgaro muito jeitoso), Johnny Cash, Marilyn Monroe (rica, triste menina), Rui Veloso cantando um tema de Sérgio Godinho, Deep Purple (Glenn Hughes assume a voz solo, coisa fina), Rory Gallagher, o formoso senhor da gaita de beiços chamado Toots Thielemans interpretando (vejam bem) Eric Satie, Paul Simon em speedada dupla com Phoebe Snow, os invencíveis Led Zeppelin e os senhores Dire Straits.
Para a semana, na emissão 13, o alinhamento vai incluir, entre muitas outras nozes e vozes, quatro riquezas que me foram indicadas pelo senhor Rui Correia. São elas: California Guitar Trio, Robin McKelle, Jimmy Bruno e, ainda, uns gajos com um nome muito engraçado: Screaming Headless Torsos.
Disponível em
91.2 FM ou
http://www.radios.pt/PortalRadio ( escolher Emissora das Beiras, distrito Viseu, concelho Tondela) ou
Às 00h00, logo.
Repete-se à mesma hora de 6ª p'ra sábado, 27/5/07.
Óbrigadinhos.

22/05/2007

Um Dia com Robert Walser







Vivi um daqueles dias calados. Em casa, sem pressa. À noite, fiz um cozido e ouvi valsas de Strauss. Enviei correio, de manhã. Fui ao posto dos Correios e despachei papel e música. Já tinha tomado café. Voltei para casa.
Quase não cuidei das notícias do dia. O mundo pareceu-me idêntico à sombra do mundo. Escrevi um texto e enviei-o.
Em casa, viajei longamente: México (1934 e 1963), Xangai (1949), Hiroshima (1945), Normandia (Omaha Beach, i.e., algures entre Sainte-Honorine des Pertes e Vierville-sur-Mer, 6 de Junho de 1944), Paris (1938).
Adentrei também a vida do escritor suíço Robert Walser (1878-1956). A vida e o fim de Robert Walser. Walser terminou na neve um dos longos passeios por que trocara, há muito, a escrita. Cito J. M. Coetzee:

On Christmas Day, 1956, the police of the town of Herisau in eastern Switzerland were called out: children had stumbled upon the body of a man, frozen to death, in a snowy field. Arriving at the scene, the police took photographs and had the body removed.

Isto passou-se. Depois de jantar, abovinado pela calentura do caldo e da broa, pus-me a ouvir uma fantasia para clarinete e orquestra. Voltei a pensar em Walser, que só queria que o deixassem em sossego os burgueses, a ponto de voluntariamente se encerrar num sanatório mental muitos anos antes de a neve o ter ajudado a tocar a paz tão longamente desejada.
O cozido sobrou. Amanhã há mais.


Caramulo, noite de 22 de Maio de 2007

SICários

Uma vergonha: hoje, no Jornal da Tarde, o "jornalismo" da SIC abordou a questão do professor que, colocado há 19 anos na DREN, foi suspenso por ter dito uma piada sobre a "licenciatura" do senhor Sócrates. Até aqui, mais ou menos bem (a peça era deficiente do ponto de vista equitativo de partes).
Depois, houve colagem (bem) da recente "indirecta" do ministro Mário Lino, "engenheiro devidamente inscrito na Ordem". Bem.
Mas depois, bem, depois veio toda uma enorme evocação de 1993, ano em que o então ministro do Ambiente, Carlos Borrego, cometeu a imbecilidade de "reciclar alumínio de cadáveres alentejanos", escândalo sanitário (e mortífero) cuja responsabilidade cabia toda ao Governo chefiado por um tal Cavaco Silva.

Para quê Borrego a propósito de Sócrates?

Para mistificar.

A SIC é de sicários.

Vergonha.



Caramulo, tarde de 22 de Maio de 2007

21/05/2007

Às Tantas, da Janela da Pensão É Possível




Às Tantas, da Janela da Pensão É Possível
(Quase Prosas, com um Nevoeiro e algumas Rimas)





1. Sou tão Feliz em 1910

Está hoje um nevoeiro muito bonito.
Desceu-nos o céu: andamos nele,
a terra subiu, tocamo-la com as mãos.
Pássaros e ovelhas trocam impressões no limbo.
O caminho entre a minha casa e a pastelaria,
hoje, é outro filme.
Enquanto houver luz, estará aberta a capela.
Fecham-na à noite, logo
quando era mais precisa.

O mundo é a montanha.
A vila é o submundo.
Mas hoje podemos não ser vilãos,
hoje podemos ser mundiais.

À minha esquerda que sobe, a sebe
luz de nuvem condensada. Parece
alegre, a longa planta. Afago-a,
chego à pastelaria com água.

Sou um agraciado. Contenta-me
uma bolacha, satisfaz-me um café,
mais não preciso que de ver,
nem tanto assim de viver.

Uma mulher invisível e inominável
produziu à sua porta um clarão de rosas
e sardinheiras.
Resistem, calicromas, à condensação, fulgurosas
e faceiras.

Sou tão feliz. Não espero o Sol, não
espero nada que possa vir.

Levo-vos comigo través o nevoeiro.
Os vivos e os mortos, os cães e os gatos,
o Almanach Bertrand de 1910 e um
desenho que uma das meninas
me fez para talismã
sempre que a Lua nascer
de manhã.

Hoje, nem Sol nem Lua.
Apenas um homem (todos os homens)
na submersa rua.



2. Casa Arrumada

Tenho uma casa arrumada.
A um canto, os sábios gregos pontificam calados
como a caixa de clipes que sobre eles esqueci.
O candeeiro espera que se apague a janela.
Alcatifo passos surdinos quando
vou mijar ou beber água à cozinha
ou à varanda verificar
o império da noite.
Macedónias e babilónias sossegadas
dormem as horas-séculos
em boas encadernações.
Quando o oriente esclarece a janela,
apago o candeeiro.

Tem sido sempre assim.
No outro dia, homens remendavam a canalização,
faltou a água na torneira.
Vale que choveu tanto,
que me lavei debaixo da caleira.

Tenho uma casa arrumada
porque sei isto assim:

morrer é tornar tudo passado,
viver é tudo passar.

Já não há, portanto, problemas.
Daqui, não há questões já. Só poemas.
Divirto-me com o formigoperariado
das letras: hermeneutas, averroístas,
panteístas, sextânticos,
atlânticos, sextafeirantes,
jogadores da lotaria,
feuerbachianos, trotskymexicanos,
e olimpistas.
Gosto deles todos.
Prefiro nadar nu na barragem, porém.

Se vou à mercearia, sábados de manhã, é
para cheirar o perfume dos frangos
que o homem assa por encomenda, é
para cheirar o Verão
nas cerejas e nos pimentos.
Tanto isso me basta quanto
respirar.
Juro que sim.

Para mais, combato a tristeza
com camisas de manga curta
e sapatos suaves.

Às paredes do meu quarto
colo cartazes de bailes religiosos
e de missas-rock,
de aniversários de elevações a vila,
de cartomantes que cegam maus-olhados,
de promoções informáticas,
de cópulas automáticas,
de combates de caracóis,
do Che Guevara e da Linda Lovelace.
Tudo arrumado.



3. Encomenda ao pintor Fernando Campos

Árvores vermelhas, um rasto de papéis verdes.
Nenhum rio amarelo: só a ideia de sua
ausência.
Instrumentos de ciência e restos de comida,
uma mão masculina de criança
(mas como sexualizar essa mão
que nunca matou, ainda não?),
um gato e um peixe vivos.

Mais aquela manhã em que a Mãe
me levou a ver o mar e me trouxe
de volta juntamente com um
saco de feijão verde.

Verde?
Um rasto de papéis verdes, árvores vermelhas
etc..



4. Mãos Cheias

As cheias da minha infância
não eram da minha infância, eram
do muito que chovia
e do rio que subia.

Boiavam laranjas vivas
e galináceos mortos
e molhos de canas
e bocaditos de casas.

O Campo marejava
como bocejados olhos.
D’Aquém à Banda d’Além
rumorava o alumínio da toalha d’água,
crespada ela pelo vento tão frio como
as mãos da minha infância,
essas sim minhas,
as mãos
da minha infância.



5. Rápido, Duro, Azul

O berço do homem que me fez
era de colchãozinho de dura palha
entre tabuinhas azuis.
Conheço que, quinto, teve de infanciar
depressa, pois que não tardou o sexto.
Meu avô era viril e minha avó também.



6. A que Cheirava, Domingo

Um restolho de cheiros contraíamos pela brisa,
acabava-se a tarde no surdo estrondo colorido
a ocidente.
Cheirava a comida feita devagar,
como se fosse domingo sempre,
para sempre.

Não foi.



7. Do Anti-Imperialismo

Lá fora, o fresco cristaliza os animais
e as pessoas pobres.
Não a nós, que nos
demoramos na cabana aquecida
pelo lume fátuo da televisão,
famílias e famílias
devorando bolos e toucinho
com rubras cafeteiras saindo sempre,
e ditos bem dispostos
e uma avó que adormece a lapsos.

Lá fora, é o império da noite.
E nós somos só isto,
não imperadores.



8. Ceia não Sabendo

Depois de consertar os sapatos vermelhos da menina,
o sapateiro estrela um ovo e coze uma salsicha.
Ele sabe que chegou a noite. Não sabe, é como.



9. Regime 1789

Paris manda-lhes que sejam magras – e
elas são, as raparigas que, em nossas
pastelarias nacionais, bebem leite
chilro com bolachinhas integrais.



10. Domine, Vocativo de Sacristão

Esquece a casa que te não lembrou.



11. Cinco Quartas e uma Quinta

Nada d’antropomorfismos,
nada de pessoalizações,
mas dá-m’ às vezes p’ra barbarismos,
paganismos, religiões.

Digo: parece-m’ a pedra feliz
e cantora a água mansa
e o sol ter sobrepeliz
e o vento ser uma dança.

A galinha (até ela)
lembra-me dama casada:
todo o galo se põe nela
desde que se saiba nada.

E o padre rubicundo,
quilos de gordo no cu,
vermelheja iracundo
e tosse sangue de peru.

Panca’ minha, bem no sei.
É da língua portuguesa.
Trop’os versos atirei,
são p’ra rir contr’ a tristeza.

(Perlas-dentes, rubi-lábios
e outras geologias,
guardo eu de alfarrábios
compulsados só por sábios
que sabem de poesias.)



12. Os Outros também Eram

Era na Tocha, 1982.
A idade, de tão suficiente quanto uma pedra,
vigorava.
O mar já então fazia o de agora, como sempre:
na noite falava palavras brancas,
de dia era prensado ao chão
pelo sol e pelas avionetas publicitárias.
Todos os sábados a televisão nocturna
emitia um brando filme de terror.
Eu bebia uma laranjada e suspendia-me
do filme como um funâmbulo da alma.
Eu era feliz.
Era em 1982, na Tocha.



13. O Rei da Comédia

O rei da comédia não tinha rainha em casa.
Tinha só piada.
No bar nocturno, de fato amarelo e gravata encarnada, dizia coisas assim:

– Vou ser muito breve, como com a minha mulher.
– Telefonei ao meu amigo e disse-lhe que a minha ambição era a mulher dele dedicar-se ao atletismo. E ele assim: “Ao atletismo? Então porquê?” E eu: “P’ra ela correr contigo.”
– Sim, porque eu sou tão amigo desse meu amigo que até estive presente na concepção dos filhos dele.
– E o alcoólico? Bem, todo o alcoólico é mais cristão do que Cristo. Sim é, porque nunca diz: “Pá, afasta de mim esse cálice.”
– Estou à vontade p’ra dizer estas coisas porque quando me casei c’a minha biciclete ela ia de ramo de laranjeira e eu de ramo de loureiro.

E depois o rei da comédia fazia pistolas com os indicadores, saía caminhando de costas, trocava de roupa no escuro (fato azul, gravata cinza, mesmos únicos sapatos) e ia a pé até outro bar onde a noite fosse poder estar calado.



14. Sétima para outra Coisa

Não é verdade que a viração fria das janelas
te faça ainda tossir:
um homem não chora e um morto não tosse.
Se queres voltar, diz-me outra coisa.
Não te insurjas de grená no clarão
de rosas e sardinheiras da minha vizinha
invisível e inominável como tu.



15. Pergunta nº 15

Que é feito dessa alegria pulsadora
que alegremente pulsava, fazendo?



16. Contabilidade – I

Esse amor de antes de mim não era.



17. Contabilidade – II

Esse amor de antes de mim não era
para ser trocado, por ti, por mim.



18. Muito

Vale-me que posso muito.
Volto, sempre que posso,
ao muito que não pude.



19. E Cedo Erguer

Deitei-me já a alba clareava.
Dormi fundo sono sem cor.
Livre então, a alma escrava
fez-se ilha, fez-se açor.

Vil volátil matéria feia
do corpo adormecido
acordou às onze e meia
bem disposta do dormido.

Espreguicei-me no chuveiro,
a sabão corri junturas:
intradedos, ‘xilas, virilhas.
Pós, reforcei o tinteiro
p’ra tintar estascrituras:
sono d’açor dorme ilhas.



20. Achamento

Acho que o futuro não é recuperável.



21. Vaca Justaposta e Idiomática contra o Quotidiano

Comparam sempre a poesia
à prioridade do dia-a-dia.
Parece que nem havia
como aquecer a vaca-fria.



22. Verde, Negro, às Tantas

Às tantas, da janela da pensão é possível
assistir a um acidente ligeiro ou
a uma pós-cena de facadas com senhoras
meretrizes gritando pela mãe e pelos sobrinhos
e a polícias correndo com o boné à banda.
Era era, é possível.
Isso não é duro.
Duro, é ser bom canalizador e ser do Minho
e não ter contrato e andar quatro anos e meio
a recibo verde em Lisboa,
dentro da pensão,
longe da mulher & bambinos.
A dureza é uma cor possível porque pode muito,
às tantas da manhã,
à janela da pensão.



23. Eixo Coimbra-Lisboa

Não sei bem o que seja.
Bebe-se a norte mais cerveja,
sempre há mais população.
Casalito novo alveja,
Log’ à saída da igreja
prosperar em condição.

Trabalhar a horta não,
qu’ iss’ é pouco doutoral.
Sem cabeça-de-casal,
euro-decapitação.

Tu faz seguros
que eu limpezas.
Nós somos duros,
somos rijezas.

(Agora a sério:)

Pega-se no carro, vai-se pela via ICqualquercoisa,
chega-se ao sítio onde a Mãe apodrece em vida,
corta-se à direita, onde já pintam
dipermercado o que foi fábrica,
onde já urbanizam sem urbanidade
um monte que já nem tinha idade,
embica-se em frente onde luz mais
e tenda-se aí os arraiais.

Olhemos, então, nossos compatriotas:
felizes, miguéistorgas, gouchas, idiotas,
poliglotas em banda larga, éméssiéne,
girl é gaja; e gajo é man.

Mas, porque são capazes e
extremaxtremamentaudazes,
digo-vos eu, numa boa,
que nem tudo o que se sabe
a meu parecer cabe
no eixo Coimbra-Lisboa.



24. Estatística Natural

As formigas dormem mais do que os tubarões.



25. Alameda e Final

Ultimamente, tenho recordado para a frente,
como se tal fizesse diferir o Dia da Lua.
Não faz, mas uma pessoa deve tentar sempre.
Era, pelo menos, o que fazia um casal transmontano
estabelecido em Lisboa no Bairro dos Actores,
à Alameda, em Lisboa, capital do Reyno.
Ele era apagado. Ela não acendia.
Mas lá tentar, tentavam.
Trinta anos daquilo.
A comida era boa e barata.
A sopa nutria o mesmo pão que a acompanhava.
Iscas de fígado, meio bitoque
– tudo isso combatia, na noite fria,
jazz, salsa e rock.
Anoitecia muito, quando conheci tais coisas
(1995-1997).
Uma seita dinheirosa jesuscristava em brasileiro
num ex-cinema arrendado, com grande sucesso
entre barbeiros e viúvas.
Tudo me passava de/ao lado, mas
outros homens conheciam a bíblia restrita
de outras mulheres: e os versículos eram
a centavos de taxímetro,
como se se pagasse a cantores
de segunda escolha.
Ou como se, estando tão de vez vivo,
fosse para viver economicamente
a lucro de mais tarde,
agora,
escrever tudo.
Tudo, sim: da António José de Almeida
descendo ao Superior Técnico, uma fila de comerciais-2-lugares
janelando putas pensionistas
alinhadas em indiana lateral
como evangelistas brasileiros,
eixo Brasil-Portugal.
Eu lembro mas não sei.
O Titanic tinha piada até ao filme.
Os outros homens britânicos
foram freis, luíses e sousas.
Ninguém é a password,
actual, alameda e finalmente.


Quarteirão de poemas: Caramulo, tard&noite de 20 de Maio de 2007
Fotografia: Caramulo, tarde de 20 de Maio de 2007

20/05/2007

Carta do Armistício


(Se alguma vez
incorrer na insensatez
de publicar um livro de poesia,
esta
Carta do Armistício
poderá prefaciar
essas páginas insensatas)



O mais que faço – é ver(s)ificar a correlação dos elementos, a força das leis presidentes: a Vida & a Morte & o Tempo.
Só faço isso. Nada mais há que fazer.
Sirvo-me da poesia – sabendo que a sirvo. Não se trata de um sacerdócio. Não se trata de um martírio. Não é missão nem submissão. É uma aquiescência. Um beneplácito. E uma resignação, também.
Frequento pastelarias e casas de bifanas, cuja universalidade me é tão evidente quão a do parque, o parque construído de árvores, pássaros e peixes vermelhos (todos partilham a água, peixes, pássaros e árvores). Os internados do Lar não frequentam o parque. Preferem a pastelaria, a mesma que em minutos abandonarei para vir, aqui, escrever-vos esta carta. Enquanto não, ali, um homem lavado ingere um quartilho de água mineral em pleno armistício: o sábado.
Algo que me acode com grande ligeireza é a autoridade da desimportância. Terraplanada pela igual sucessão, a Coisa não tem importância. Assim é.
É como quando apanho o comboio. Fazendo-o, matriculo-me na dimensão paralela dos viajantes, esses seres-almas que não são corpo enquanto a viagem dura, mas o puro trânsito: agentes do tempo trajectório. É como quando, também, tomo por uma noite um quarto de hotel. Nunca deixa de povoar-me o carácter miniatural dos sabonetes oferecidos pela gerência, os frasquinhos de plástico que dizem “shampoo” e “gel” como as crias humanas dizem “papá” e “gelado”.
Também, ainda: toda a cidade me é a mesma. A que tem mar sobe a montanha, de que desço entre giestas para recolher a fantasmagoria paga a ouro e a metro quadrado dos iguais centros comerciais do Ocidente.
Sim, recolho, verifico, versifico. A empregadita do estaminé de sopas instantâneas; o poeta que evoca as oliveiras da terra onde nasceu; a inglesa casada com o autarca local; a grávida monofásica que fez um filho ao marido abstracto; o tractor cor-de-cereja no campo verde; o sábado; os homens-cantores; as operárias que vêm tomar a bica; os carros eléctricos transportando o tempo, o turismo, a cor amarela; a rima que denuncia a generosidade do idioma; a exclamação de toda a árvore; a água que exclama peixes vermelhos.
A economia e a finança, confesso-o sem embuço nem rebuço, não me são alheias – mas só por fora. Ainda hoje me achei perguntando: quanto dinheiro gerou e gera e gerará aquele sem-tostão correspondente comercial cujos nomes de dentro eram António e Nogueira, cujos extremos eram Pessoa e Fernando? Sorrio de lápis na mão.
Lá (cá) no fundo, não passo de um grilo falante do eixo Coimbra-Lisboa. Dou-me ao respeito, porém: li Teixeira de Pascoaes e Vitorino Nemésio e Carlos de Oliveira e Dylan Thomas.
Tenho escrito quando chove.
Já estive na Figueira da Foz. Já fui a Peniche. Andei à noite sozinho em Bruxelas. Já respirei em Trás-os-Montes.
Houve, mesmo, uma altura em que tive dólares. Foi no século passado. Eu ia com os dólares, o mundo franqueava-se-me. Derivei nesse limbo fácil, adquirindo algumas coisas que devo entretanto ter perdido, pois que nenhuma conservo ou, sequer, recordo.
Antes dos dólares, sedava-me a constância ciciada das palavras “açucena” e “cegarrega”. Foi cedo, na minha vida. Considerava já então, como hoje sigo aliás considerando, que a canícula das quintas senhoriais (com suas ínsuas, seus fornos da broa, seus currais prósperos) se condensava: açucenava-se, cegarregava-se. Era a porra da poesia: lei elemental e elementar.
Uma alegria, pequenina como um sabonete de hotel, subjaz a esta Carta do Armistício: é o que pude fruir, em trabalho, da vida que me coube e em que, bastas vezes, me parece nem caibo.

Carta: Caramulo, tarde de 19 de Maio de 2007
Fotografia: Caramulo, início da tarde de 20 de Maio de 2007

19/05/2007

Questionário Breve





É um tanto ou quanto ao contrário da vida, agora:
os dias crescem, pintados pelo ar que arde, cheio
do nosso azeite resfriado, requentado óleo dito.

Ainda agora, que saí. Apreendi a noite logo.
Também era evidente: nenhum pássaro – e
carros cegos apalpando de faróis o caminho.

Quanta beleza podemos suportar?
Isto me perguntei ao ar que volvia
aquecidos jardins voadores

na respiração – e respondi ao mesmo
que muita, nunca toda.
Nem lembrada, nem por causa do Verão,
aí.

Palavras: Caramulo, madrugada de 19 de Maio de 2007
Fotografia: Caramulo, tarde de 26 de Abril de 2007

18/05/2007

Cachorro ao Pé





A imortalidade é muito tempo.
A mortalidade, também.
A uma e outra contraponho a euforia de um cachorro num lago, num dia de Verão. Um cachorro alegre é mais fácil e menos pesado do que a imortalidade, a mortalidade, a idade.
Um dia de trabalho duro e recompensador também ajuda, quando, à noitinha (a noitinha é o crepúsculo, é o ocaso dos pobres), o corpo recebe a ceia com a alma toda.
Sair um pouco, depois. Há uma brisa morna, um ar que as árvores filtraram primeiro, pouco antes. Aos pés das árvores, alguma água, um carreiro cimentado de lascas, cascas, pedrículas, sulcos que parecem rostos envelhecidos, ou então tentativas que a terra fez para escrever. Mas não são. Não são nada disso. A realidade é mais leve do que isso: a gente não lê.
Gosto de repetir os meus homens antigos nos passeios modernos que há muito tempo (hoje) dou. Se não estou na floresta, estou na praceta empedrada da cidade marítima. O comércio fecha ali mais tarde, faz-se sentir um prolongamento, uma esperança. Se o eu for um homem, há sempre a passagem das mulheres maquilhadas pelo sol do mar. Se for a outra coisa (o espelho de costas: a mulher), tenta-se perceber.
Pode não ser na cidade marítima, pode ser na vila que jaz aos pés da montanha. Aí, então, como sempre, também. De um posto alto, permitir aos olhos que voem, que recolham longe os diamantes pobres das aldeias esmigalhadas no veludo da noite, longe.
Longe de mais para se morrer, para não se morrer, cachorrito.


Palavras: Caramulo, noite de 18 de Maio de 2007
Fotografia: Caramulo, manhã de 15 de Maio de 2007

Coimbra-B, entretanto




Sonhar ou fotografar, às vezes dá o mesmo no mesmo.
E os mortais são vitais, mexem-se, atravessam a luz
como se água devassassem.
Vemos e não sabemos, só olhamos, deixamos tudo passar.
Deixamos passar tudo.

Não é a dor, qualquer ela seja.
Nada que um pano quente no inverno não cure.
Nada que uma sombra de árvore não cure, se estia.
É devassarmos as trevas até que a janela do quarto
nos resgate.
Esse fundamental ser-só que nos recobre como uma pele,
suas escamas duras como palhetas de ferro.

Dentro, os órgãos pulsam sangue cego, muito preto.
Dentro do comboio, o homem.
Dentro do homem, o rapaz.
Nas mãos de ambos, a máquina fotográfica vê sozinha
as passagens, o nível, obtura a cárie do relógio.

É repetir e tornar a dar, a perder.
Nós estamos nisto.
Costumo escrever porque não abarco.
Dentro do comboio, o pacote de bolachas do velho guloso,
o portátil do jovem netinho de alguém, a revista
com o cristianorronaldo na capa.
Muda-se de coxia para coxia,
de carruagem para carruagem
(o vago terror nas passagens articuladas que deixam
ver o chão corredor),
chegamos ao vagão-bar,
metemos conversa com o contratado,
aceitamos-lhe um café que sabe a mijo de contrabando,
pensamos na chegada,
nunca na partida.

O que deixamos, quem deixamos.
Quem vamos ter, com quem vamos ter.
Um cavalo rápido na janela, casinhotos de ferramentas,
capelas bruscas como ideias brancas,
um velho de cadeira de rodas recebendo o sol a uma porta,
charcos de chuva envelhecida, barro,
roupa crucificada em arames de pátios,
então a voz do comboio

dentro de momentos
daremos entrada na estação de Coimbra-B


e chama-nos
com toda a razão

passageiros.

Palavras:
Caramulo, tarde de 18 de Maio de 2007
Fotografia:
viagem Santa Comba Dão (Vimieiro)- Pombal,
2 de Abril de 2007

Bai ao Binho



Lucy, Jacy e Chiquinho
bamos lá a ajoelhar
ca senhora pão e binho
munto traz para bos dar

Homem bestido de branco
há-de bir pa bos lembrar
e milagre consumar
dando a mão a quem é manco

e artelho ao maneta
e cotonete ao ceguinho
mas pra bós (judeu forreta)
bai trazer só pão e binho

Lucy, Jacy e Chiquinho
com bolor e binagrete
faz-se um analfa santinho
e de três um coparete

‘sculpem lá q’alquer coisinha
coisinha profanação
ave Mãe salve Rainha
mais binho e menos pão


Caramulo, tarde de 18 de Maio de 2007
(ilustração arretirada do blog
www.antologiadoesquecimento.blogspot.com)

Não Apenas mas Ainda




Não apenas os mortos.
Também alguns vivos devemos sepultar:
pois que para nós são defuntos,
só não enterrados ainda.

Texto: Caramulo, tarde de 18 de Maio de 2007
Fotografia: Viseu, 28 de Abril de 2007

Caramulo, manhã de 15 de Maio de 2007


17/05/2007

Longo Porvir Breve


Nu Sentado com Fundo Negro
pintura de Fernando Campos
(
http://www.ositiodosdesenhos.blogspot.com/)



Um dia fechas a porta por dentro
ficas em casa a sentir crescer o cabelo
pintarás de escarlate todas as vinte unhas
para que o gato sonhe com sangue de pássaro
os dias ser-te-ão longos
rápidos os meses.


Caramulo, manhã de 17 de Maio de 2007

16/05/2007

À meia-noite no Montanha Mágica



AFLUENTES

Que sabe um rio dos seus afluentes? E os afluentes dos subafluentes? E estes dos pequenos regatos da montanha? Os rios não têm memória. (Embora digam que a memória é um rio.)

Têm água. E nós sede.


(in O Poeta Nu)



Jorge de Sousa Braga nasceu em 1957, em Vila Verde, e é médico no Porto. Os seus cinco primeiros livros de poesia, publicados nos anos oitenta, encontram-se reunidos em O Poeta Nu (1991). A nota irónica e um profundo sentimento de ternura perante o mundo constituem duas marcas que podemos encontrar na sua escrita.
Quando for meia-noite, não é só a 5ª feira, 17 de Maio de 2007, que começa.
É hora do Montanha Mágica, programa a sintonizar entre as 0 e as 2 da manhã em 91.2 FM ou a pescar na rede em www.emissoradasbeiras.com. (A repetir às zero horas de sábado, acabada a sexta, no mesmo horário.)
Nesta edição, textos de fabrico próprio e a poesia de Edgar Lee Masters (EUA, 1868-1950), Jorge de Sousa Braga, Jorge Gaitán Durán (Colômbia, 1924-1962) e Adam Zagawewski (polaco, n. 1945).
NB: poetas e informações foram autorizadamente sacados ao (excelente) blog Poesia & Lda
(http://poesiailimitada.blogspot.com/), do poeta João Luís Barreto Guimarães.
Naturalmente, há muita música: Mary Mary, Beethoven (sim, Beethoven...), Hermínia Silva, Linda Ronstadt, Goldfrapp, Andy Laverne, MattRenzi/Jimmy Weinstein/Masa Kamaguchi, Noel Lenaghan, Pulp, Adriana Calcanhotto, Everything But The Girl, Elis Regina, Fausto, The Beatles, Léo Ferré, Carlos do Carmo, Catalani, Jorge Garcell Santana, Elvis Costello & The Attractions, Mler Ife Dada, Phoebe Snow, Jamiroquai, Sisters of Mercy, Susana Coelho e Sam Cooke.
A entrada é livre. A montanha é mágica.

Amando, todo o Gajo é Borges


Melancolia
pintura de Fernando Campos


Eu já vivi dentro de ti.
Foi quando era cego.
Fechar os olhos dentro de ti
era uma redundância.

Agora reentro
nos teus sonhos secos.
Ando por ali,
vejo as tuas glândulas
maduras como
pêssegos, tomates.
Alpino pelas
nervuras de couve
do teu cérebro.

Só não volto ao delta,
onde outrora ceguei.

Caramulo, início da tarde (13h03) de 16 de Maio de 2007

Chumbo, Música e Pão – uma passagem






A mais comezinha realidade pode ser a realidade mais assustadora.
Finjo quase sempre que não, que não é verdadeiro o primeiro verso.
Hoje está sol, não há susto, pela minha janela entra a música dos voadores.
Mas no outro dia, sabes, no outro dia era isto: isto, assim.
Meti-me dentro de casa. Depois, tive de sair, meti-me dentro de outras casas.
O céu carregava a sua caçadeira descomunal.
Todo aquele chumbo no nosso sangue.
As moscas e os pássaros e os cães e as crianças daquele dia: todos cegos.
Eu derivei na hora, pensei no mar, pensei na minha Mãe, pensei nos mortos
do costume.
Fiz assim: peguei no telefone e contei anedotas a amigos.
Tenho muitos amigos e muitas anedotas.
À noite, fiz-me rir. Fiz sopa, tinha comprado pão fresco, a coisa passou.



Texto: Caramulo, manhã de 16 de Maio de 2007
Fotografia: Caramulo, 26 de Abril de 2007

15/05/2007

Dia Todo


À tarde
levas a manhã
nas mãos
a noite
na garganta.



Caramulo, tarde de 15 de Maio de 2007

Rapariga com Rosas nos Olhos e Outros Poemas

Rapariga com Rosas nos Olhos

1
Ainda arrefece o ar, usa o casaco ainda
se saíres.
Usa ainda o meu nome
se voltares.
Arrefece o ar ainda.

2
Na província
no café
a rapariga chora
no canto
do café
da província.
(Verdade: oito menos cinco da tarde,
ainda não anoiteceu por já ser
maio, catorze.)

3
(Ela chora
duas rosas
os olhos
vermelhos.)

4
Já fui hóspede de um hotel 5estrelas5 de Madrid.
Tudo pago.
A porta do quarto não era a chave, era a cartão.
Entrei, o televisor ligou-se sozinho e dizia:
“Bienvenido, señor Abrunheiro”.
Cum carago.
Passam-se dez anos, estou num café de província portuguesa vendo, ao canto, uma rapariga sozinha a chorar.
Dizem-me os da terra que é maluca.
Bienvenida.

5
Usa o meu nome e o teu casaco.

6
Ai amor
eu antigamente.

7
Telejornal.
A menina que desapareceu.
Não sei qual é a novidade.
Eu já vou em duas.

8
Depois diz-me
rosas
diz-me
olhos.




Saudades de Manuel

para o J. Manuel


0. Pena

(Tenho muita pena mas misturam-se-me as coisas.
Bem minha Mãe me dizia
– Filho, olha que isso da Poesia…
E eu olhei e por cá fiquei.)

1. Manuel

Só tinhas um corpo para essa alma toda,
bem te lixaste.
Nos não ofereces mais tua amadora cinefilia,
nem tachos de guisado devoras mais.
Que pena: os dias são bonitos, ainda,
como azulejos.
Poderíamos ainda falar, não sei,
do que vai no Avenida
(mas também, como tu, ruiu o Avenida).
Olha, deixa.

2. Prosa deitada

Moramos num sítio tão frio, que até as árvores se deitam. Isto não tem mal algum. Ligamos a televisão, vemos o CSI, sentimos lá fora os poucos carros da pobre gente que passa no gelo. Não temos medo. Às vezes, acendo um fósforo só para que da memória se me não escoe de todo o lume. Também fazemos amor, que é de borla e de olhos fechados – como o dormir. Telefonamos aos filhos dispersos pelos 5continentes5, pelas 7partidas-do-mundo7. Atendem-nos quase nunca, mas telefonamos sempre. A telha é cor-de-tijolo, o céu é da cor que pode, a árvore é verde de dia, preta de noite – e deitada.

3. Casal com Ordenado Líquido

Eu e a minha senhora
andamos na rua a par
como as lágrimas.

4. BG, C.

Vi hoje um cu que me fez pensar.
Estava rebuçado em ganga justa.
As metades eram em gomo de laranja.
O rego era um fio de limão.
Presidia a duas pernas desenhadas.
Acabava umas costas litorais.
Do lado oposto, tornava-se matriz.
Boa gaja, carago.

5. Inveja

Invejo o rapaz de fato-macaco
que trabalha na oficina-auto.
Parece concreto, inteiro, pouco
dado a Camões e a merdas.

6. Saudades de Manuel

Tenho saudades, Manuel.
Tantos versos e só tenho isto para dizer.



Soneto a Pedir que Olhes

Martelam-te pétalas a cartilagem auricular.
Não mais serás inocente – isso faz anos.
O tempo que gaste tanto gostar.
Tempo de areia, anos oceanos.

Não queira a tristeza pagar a rodada
sozinha. Que queira ser compincha a tristeza.
Ávida, a vida suporta a despesa.
Chegando-lhe a morte, não paga mais nada.

Olha, vai ao médico de família.
Olha, compra o livrete, ajuda os bombeiros.
Olha, não sejas assim, não sejas assado.
Olha, sexta sendo noite vai haver fado.
Olha, que não fiquem perdizes nem pardieiros.
Olha, passa uma mão de cera na mobília.



À Tardinha com o senhor Hopper

Estou dentro de um quadro do senhor Hopper.
O café é uma esquina redonda.
Fora, livor azul (o céu), livor verde (a tília),
livor tijolo (o telhado).
Há mais quatro homens no café.
Não, cinco (entrou outro).
O 1 tem casaco azul (o céu).
O 2 tem camisola verde (a tília).
O 3 tem camisola cinza (o céu, ontem).
O 4 tem camisola vermelha (o telhado, vivo).
O 5 tem camisa negra (o céu, daqui a pouco).
Há uma arca vertical de gelados.
Uma mulher prenhe deriva no
plano do balcão.
Dizem assim: Não, Não, Não foi assim,
Assim é que foi.
Eu digo: Não, Não
– e pareço um cão.
Estou dentro de um quadro do senhor Hopper.
O jantar arde, longe como um grito d violada.
É tudo tão bonito, se reparar.
Há esta força.
Costumo tomar café num café
tão higiénico, que ir ao urinol
é uma devassa química.
Até o mijo cheira a limão:
é de ter gente que liga
a lixívias, lídias e ricardos reis.
Estou dentro de um quadro do senhor Hopper.
A moldura é pedra e casebres.
Anexam os casebres curros
onde penitenciam os burros.
Garganteiam as ovelhas, as cabras.
Não é muita a civilização.
É muito o ar, que vi já torrar,
em agosto bravo,
o que seda foi de junho.
Tantos comboios passam sem nós dentro.
Rios tantos passam sem nós vendo.
Só eles (rio, comboio, café) passam
se os virmos passar.
Alma ou não-alma.
Sinapse e sinopse.
Eu digo:
Às vezes, fritamos um frango, é sábado,
não queremos morrer, não queremos viver.
Depois vem o senhor Hopper e diz:
Faz-se tarde,
não tarda
é noite.



Mais outro Boletim Meteorológico

Sol com sol.
Carne com carne.
Quem entristece primeiro?
Quem primeiro acontece?

Nós vemos atenciosamente a película pornográfica:
o álbum de casamento.
Abrimos o álbum de casamento e
assistimos à pedofilia contrariada do pai,
à ginofilia da mãe,
ao voraz apetite doceiro da avó-viúva.

E de repente faz-se chuva.


Caramulo, entardenoitecer de 14 de Maio de 2007

14/05/2007

Canção Imperial

’quenitos dedos ’ianam ’armonia
das teclas pinga o som sala-senhora
lá fora a street em névoa fria e fria
a si mesma evoca evocadora

entra a senhora Edgar com pastelinhos
acorre Sebastião com dois beijinhos
o chá perfuma a ’stratosfera
espera a criada na sala de ’spera

marfins e dardos pontas de lança
do imperetéreo que não no é mais
molduram do piano a dança
dança das eras imperiais

agora o preto é negro é gente
está tudo tão diferente
não sei sequer senhora que lhe diga
minha amiga minha antiga

não precisam já do teatrinho
comportado à maneira
nem de sandes de pepino
da Ordem da Jarreteira

pretos e brancos – cinza fria
q’o mais é impérioconomia



Caramulo, tarde de 13 de Maio de 2007

13/05/2007

Rostos, Ripas







Deu a recente vida dois, três dias seguidos de sol. Agora
amanhece o domingo pendurado de cordames de navio:
de grossa, a chuva torna vertical a terra, navega-a a prumo.
Deitados na cama, nus os peitos,
guardam-se de o que os sitia:
as palavras futuras do domingo acumuladas no corredor,
além da porta, tentando forçar a entrada no quarto.

Disfarçam, descalços, uma dança, um tango de pijamas.
Ele toma banho primeiro, a cabeça branca de espuma, os olhos
postos no postigo cor-de-pompeia, onde a chuva.
Ela ferve café na cozinha, consulta as mensagens tardias
no telemóvel. Na varanda, a roupa posta a secar
adeja panda. Ele veste roupa perfumada de ferro quente,
ela acode à chuva domesticada da banheira, ele espera por ela.

As últimas tintas da noite escarolam ainda, da luz, fitas
ominosas. Cultiva a vizinha rosas, que são a quarta dimensão.
Eles vão no carro, não é longe a pastelaria, mas com esta
chuva. Dentro, as famílias respiratórias metem bolos
através do vapor, fumegam dentes, o som do televisor
sempre muito alto, tossem cor os caramelos de fruta,
o pus das bolas-de-berlim, o glaucoma torrado das natas.

De satélite, tudo é tão pouco: eles sabem. Talvez por isso
só queiram café e água. Apreciam o pão exposto: obra antiga.
Trocam a nota de vinte que conseguiram salvar do sábado,
cigarros para os dois, cinco salvos para o gasóleo. Longe, como
um idioma estrangeiro, o vale alcatifa o corredor entre serras.
Animais de trabalho falam mágoas fechadas em currais
não sancionados pela outra Europa, a de cima.

Alimentam-se de breves certezas e de frangos pequenos.
No regresso, uma árvore japonesa abre as asas como um pavão exilado.
Sorriem à vista da árvore-pavão: tudo é tão barato, que só
viver custa. Ele fecha-se na garagem para inventar carpintarias,
ela sobe à sala da lareira e revê álbuns de fotografias: o que ele
faz à madeira, faz ela à memória. Resina comum cola e vivifica
rostos, ripas.

Deitam-se para lá da sebe de palavras. Orações murmuram,
os pés tocando-se no outro país do ante-sono. O vento enxugou
a terra, a varanda, a roupa invertebrada que ela recolheu enquanto
ele lavava os dentes e consultava no espelho a aldeia da cara: a casa
do olhar, o caminho da boca, as alminhas cavernosas do nariz.
Amanhã, tem de se mudar o óleo do carro. Sim. Na volta, traz
açúcar. Boa noite. Boa noite.



Texto: Caramulo, tarde de domingo, 13 de Maio de 2007
Fotografia: Caramulo, noite de 27 de Março de 2007

12/05/2007

Visto da Bélgica, Portátil é o Olhar do meu Cão






Acumulam-se-me cadernos como dias. Têm, como os dias, capas pretas. Trovejam na quietude da habitação onde os encerrei (os dias, os cadernos) junto aos livros dos outros senhores. Estive a ouvir uma canção de Ralph McTell chamada Streets of London. Nunca fui a Londres. A Bruxelas, já. Peguei num caderno velho e acabado. Não estava acabado: ainda havia coisas a que faltava dar letra de forma. Agora, estou a ouvir Neil Diamond. A seguir, faço café e escolho outro cantor. É sábado, 12 de Maio de 2007. De um caderno de Fevereiro tirei o que segue.

I. A SITUAÇÃO

1
Não te deitarás no sal da terra
– nem no serás.
Confirma-te: sem piano
nem puta emprestada.
Ainda bem:
não sabes tocar piano
nem putas.

2
Falta pouco?
Falta muito?
Que falta faz a falta
que falha?

3
Mordes o gomo da laranja
com dentes acrílicos.
Não perdeu a laranjeira
seu fruto,
dando-o embora a morder
a dentes de dentista.
Que era laboratorial
teu futuro,
só tu aventaste que não.

4
Que não era p’r’assim ser.
Que um monte de raparigatas
somava trechos de cal
por montes urbanizáveis.
Que só os futuros não eram
amáveis.

5
Uma vez na vida hei-de
receber de novo
o nada a escrever.
Pelos pulmões de novo
o ar novo que cresce
de baixo dos albatrozes.
Nenhum empréstimo.
Dádiva nenhuma.
Só o próprio mér(d)ito
de ter sido vivo
até morrer.
E de nada ter ficado a dever.

Caramulo, noite de 10 de Fevereiro de 2007



II. ÁREA DE SERVIÇO – Nota e Aviso

Julgo dizer correctamente quando digo que para Alexandre O’Neill o contrário de “vida” não era “morte”. Era a “vidinha”. Li uma entrevista que ele concedeu não muito tempo antes de morrer. Disse-se “meio morto”. Estava, de facto, muito doente. Retive sobretudo aquela oposição vida/vidinha. Eu era jovem, então, e aprendi.
Ainda hoje considero menos má do que o ramerrão burguesóide dos habitantes de capoeiras, por mais condóminas. Não me sinto superior a essa gente cinzenta. Sou, apenas, diferente dela por clara, marcada e vincada opção. Arbítrio meu. Pago um preço alto por isso, em certas áreas de serviço da minha vida. Mas a liberdade moral compensa-me. A minha sexualidade nem é escabrosa, nem católica. O meu consumo é individual. A minha raiva é propósita e despropositada, depende do objecto. Tão depressa sou ocorrido por uma composição lírica de (a)parente (d)existência, como por uma catilinária cospe-bílis de efeitos redentores.
Não vivo a “vidinha” tão execrada pelo O’Neill – isso é que não. Já confundi e já me deixei confundir. Quando me fui algo abaixo, recolhi à oficina e regressei. Também é preciso, entanto, repudiar. É também necessário renegar. Já fiz isso – e isso continuarei fazendo, sempre que a pusilanimidade alheia me turvar os olhos como uma mosca afogada numa gota de azeite. É-me indispensável dizer puta-que-os-pariu até aos que não são filhos de putas. E já o disse. Repeti-lo-ei, sempre que essas “vidinhas” ameaçarem o sentido, a determinação e a inconsequência da minha vida.
Aos outros, a todos os outros, ofereço histórias e rimanços e um sentido diário e constante – bem hajam.

Caramulo, noite de 15 de Fevereiro de 2007



III. LA SITUATION LITTÉRAIRE AU PORTUGAL, FÉVRIER 2007, SEIZE

Rogar para arrogar-se:
sistema de vida.
Arrogantecagar-se:
dar-se a alma malparida.

Ind’oje li eu no Público
restos e rastos, do plágio são,
tais que, como o pêlo púbico,
encaracolam a explicação:

que não senhor, que não senhora,
que tudo é coisa natural,
que a vaca na manjedoura
copia o boi – e que é normal.

Será normal. Pois tudo bem.
O orelhudo diz que é do Poe.
Abençoada Santa Mãe.
Copy, paste, enter, delete e voe.

Merci, Chinês. Pour le Vol et les Voleurs.

Caramulo, noite de 16 de Fevereiro de 2007



IV. CORRUPCÃO

O meu cão Faruk
e o meu cão Mondego
andavam os dois em sossego.

Chegavam os cheiros
do ar farejeiros
róbinude, líraljonyfreituque.

Cedo na manhã
xerife notingã
colmilhava pernil porcum.

O meu cão Faruk
e o Mondego meu cão
pareciam os dois ser só um.

Cheira a corrupcão
co’a puta mais rasca
loureiro à porta da tasca.

Cheira a Portugal
muito a gente gosta
que nos pinte tinta de bosta.

Cheira a judiaria
faz-me fama mouraria
tira-me a estrela de cima.

Meu par cachorrão
é de bela e senão
o ferro se corta à lima.

Ó país de caca-caça
império contrataca-taça
perdido por cem melhor que mil.

S’a caravana passa
mesmo com tanta trapaça
há que pôr rede no canil.

Caramulo, noite de 17 de Fevereiro de 2007



V. SUMAS ABSTRACÇÕES

Estes dias serão somados em Inverno 2006-07.
Por enquanto, não. São apenas um dia, uma noite.
Esforço-me por não levar a conta além disso.
Eu, que não faço senão acumular somas datadas.

Tenho uma receita de sopa de tomate, que exerço.
Carnes, vegetais, fósforos, gás, panos
juncam o universo da cozinha na tarde de domingo
novo. Tenho livros e discos e janelas.

O sol é fresco, as árvores ramalham ao favónio.
A estrada que não desço, desce sozinha ao vale.
Aos outros mundos do mundo. Subi uma vez.
Na cozinha, o vapor forja subsistências.

Depois da sopa, tomo as rédeas do meu trabalho.
Fulgura de giz-múndi a nuvem cartográfica.
Milhões de palavras (mas só duas ou três pessoas)
ruminam como vacas infinitas no pradécrã.

As músicas filtram o silêncio benemérito
da minha cabeça: esferas descidas à minha vida.
Esta aldeia não tem sinos, santos crepusculares sim
– e apenas. Não há pessoas. Há horas.

Numa pausa de café e nicotina, a visão: um carro
sem tripulantes desce aos soluços por uma ravina.
Depois, primeiro plano de loja de bicicletas.
Depois, tiro o olhar desses impérios sem imperadores.

Somos mais longos do que a hora. Tambores coam
o ar dos túneis cursivos. Torno itálica a boca,
inclinado para o primeiro vinho da tardinha.
Líquenes amusgam o ar frio da montanha balsâmica.

Acredito na potência da mais calma fúria.
Acredito na coerência dos loucos das ruas.
Como vamos? Vamos indo pela sombra,
vamos somando abstracções.

Caramulo, tarde de 18 de Fevereiro de 2007



VI. PARA O LEITOR DUPLO

1. O LEITOR DUPLO

Se pudesse dispor de uma vida paralela que nunca dormisse, queimá-la-ia em leituras para que esta vida, única, me não concede tempo.
Desta, nesta, teria a vida – e vivê-la-ia.

2. A MACACA DE FERRÉ

Pepée,
a macaca de Ferré,
é
todos os
cães que tive.

3. MANUEL BARATA
(n. Mata, Castelo Branco, 1952)

Fez as pazes com a guerra,
fez as pazes com a paz.
É de homem.

4. L. COM C. NO N.

O povo, leigo, garantia
que o mal de que sofria
era cancro-no-nariz.
Fosse-o ou não, foi-se.
Chamava-se Luís.

5. PRURIDO DE OUVIDO

Ensurdece, a cera, soalhos e ouvidos.
Patitas coagula de insectos.
Recuerdos tornam-se obsoletos:
em paz só jaz que se dá a olvidos.

Digo: esquece o cocó das afeições
e o mijo grelhado de putilusões.
Um homem que esquece, depois aparece:
leva a mão e coça-os.


Caramulo, tarde de 20 de Fevereiro de 2007



VII. PORTÁTIL, O OLHAR DO MEU CÃO
(um soneto económico)


O coração das crianças é economia.
Corrompe, faz constar, iça e abate.
Dispõe a circulação do chocolate.
Não tem qualquer ergonomia.

As mãos das mulheres são tesouraria.
Com(s)tam, fazem contar, cortam e abatem.
Estou sempre à espera que me matem.
Conto com isso, qualquer dia.

Portátil é o olhar do meu cão.
Eu o porto, tombado o serão.
Já era crepuscular, antes de o ter.
Agora o já tive, não volto a conter
as lágrimas mansas p’lo cão-criança
que economizei p’ra poder viver.

Caramulo, tarde de 23 de Fevereiro de 2007



VIII. CAPITAL É BRUXELAS

(para o Fernando, naturalmente)

Não é possível registar o viver todo.
Coisas escapam-se pelas ruas quando não vemos.
Tenho um irmão sazonal.
Bélgica, França, Inglaterra: operário.
Itália, Alemanha, Espanha: passou.
Eu não fui ver.
Eu fiquei aqui.
Vejo agora, escrevendo-o.
Teve frio, comeu arroz, saiu a ver os domingos estrangeiros
dos outros gajos europeus – são diferentes,
os domingos, os gajos.

Até o arroz é diferente – as palavras que o compram.
Tenho sentido isso, quando escrevo.
A minha poesia é boletins meteorológicos.
Se chove, quanto chove, quando chove.
Tenho um irmão sazonal.

Já o tenho visto por aqui,
na Bélgica.

Caramulo, tarde de 23 de Fevereiro de 2007



IX. TODO UM SONETO PARA UM VERSO SÓ

Substituí (há muito, agora reparo) os sítios
a que não voltarei por os que aonde nunca fui.
Não precisamos da doença para reservar geografia.
Basta-nos, para tanto, a malévola saúde.

Tenho um punhado de pessoas, não mais.
Fiz delas a humanidade toda.
Talvez conste da humanidade delas.
De duas, três, um punhado, talvez.

Vejo os jogadores no estádio. A luz é branca.
A multidão salga a voz nas arcas celeiras.
O instinto braveja contra a vida.

Já fui capaz de adiar ventanias, não mais.
Agora tudo é sempre nunca mais.
A frase correcta de um amigo é sempre em verso.

Caramulo, noite de 24 de Fevereiro de 2007



X. CAPR’OESIA

A mistura dos elementos não é da responsabilidade
dos poetas.
Os que o são.
Não.
A cabra é mais feminil,
às vezes,
do que compete às reses.
Está nela a putaria,
não na poesia.

Caramulo, noite de 24 de Fevereiro de 2007



XI. CHAPA

(para o senhor José Carvalho ( Zé Bate-Chapas),
por ter sido pai de um Amigo meu
)


Há muito lhe passara perto a morte,
não a morte fácil dos versos mas a outra,
a que se esconde à luz dos versos,
e depois aparece para gasto de telefonemas,
poemas, gasóleos e surdos impropérios.

Assim entende e estende a morte
seus impérios.

Até a bate-chapas
e a pais sérios.

Caramulo, noite de 24 de Fevereiro de 2007



XII. GRAMÁTICA

Tenho alguns adjectivos – é quase tudo
quanto me sobra do bom tempo.
O bom tempo era quando o sol
adjectivava sozinho o mundo
e as coisas do mundo.

Tenho algumas subordinadas – meninas
que não ajudei a comer
(nem pensar nisso)
e trabalham hoje de criadas
em estações de serviço.

Preposições – tenho tantas
quantas as necessárias,
involuntárias,
formigas-operárias,
da línguas de todos os dias
latinos,
nocturnos e pequeninos.

Verbos, já não tenho.
Envelheço bem.
Fui, vai, não vem.
Nem mal, nem bem.
Vai.

Caramulo, noite de 24 de Fevereiro de 2007

Canzoada Assaltante