Acumulam-se-me cadernos como dias. Têm, como os dias, capas pretas. Trovejam na quietude da habitação onde os encerrei (os dias, os cadernos) junto aos livros dos outros senhores. Estive a ouvir uma canção de Ralph McTell chamada Streets of London. Nunca fui a Londres. A Bruxelas, já. Peguei num caderno velho e acabado. Não estava acabado: ainda havia coisas a que faltava dar letra de forma. Agora, estou a ouvir Neil Diamond. A seguir, faço café e escolho outro cantor. É sábado, 12 de Maio de 2007. De um caderno de Fevereiro tirei o que segue.
I. A SITUAÇÃO
1
Não te deitarás no sal da terra
– nem no serás.
Confirma-te: sem piano
nem puta emprestada.
Ainda bem:
não sabes tocar piano
nem putas.
2
Falta pouco?
Falta muito?
Que falta faz a falta
que falha?
3
Mordes o gomo da laranja
com dentes acrílicos.
Não perdeu a laranjeira
seu fruto,
dando-o embora a morder
a dentes de dentista.
Que era laboratorial
teu futuro,
só tu aventaste que não.
4
Que não era p’r’assim ser.
Que um monte de raparigatas
somava trechos de cal
por montes urbanizáveis.
Que só os futuros não eram
amáveis.
5
Uma vez na vida hei-de
receber de novo
o nada a escrever.
Pelos pulmões de novo
o ar novo que cresce
de baixo dos albatrozes.
Nenhum empréstimo.
Dádiva nenhuma.
Só o próprio mér(d)ito
de ter sido vivo
até morrer.
E de nada ter ficado a dever.
Caramulo, noite de 10 de Fevereiro de 2007
II. ÁREA DE SERVIÇO – Nota e Aviso
Julgo dizer correctamente quando digo que para Alexandre O’Neill o contrário de “vida” não era “morte”. Era a “vidinha”. Li uma entrevista que ele concedeu não muito tempo antes de morrer. Disse-se “meio morto”. Estava, de facto, muito doente. Retive sobretudo aquela oposição vida/vidinha. Eu era jovem, então, e aprendi.
Ainda hoje considero menos má do que o ramerrão burguesóide dos habitantes de capoeiras, por mais condóminas. Não me sinto superior a essa gente cinzenta. Sou, apenas, diferente dela por clara, marcada e vincada opção. Arbítrio meu. Pago um preço alto por isso, em certas áreas de serviço da minha vida. Mas a liberdade moral compensa-me. A minha sexualidade nem é escabrosa, nem católica. O meu consumo é individual. A minha raiva é propósita e despropositada, depende do objecto. Tão depressa sou ocorrido por uma composição lírica de (a)parente (d)existência, como por uma catilinária cospe-bílis de efeitos redentores.
Não vivo a “vidinha” tão execrada pelo O’Neill – isso é que não. Já confundi e já me deixei confundir. Quando me fui algo abaixo, recolhi à oficina e regressei. Também é preciso, entanto, repudiar. É também necessário renegar. Já fiz isso – e isso continuarei fazendo, sempre que a pusilanimidade alheia me turvar os olhos como uma mosca afogada numa gota de azeite. É-me indispensável dizer puta-que-os-pariu até aos que não são filhos de putas. E já o disse. Repeti-lo-ei, sempre que essas “vidinhas” ameaçarem o sentido, a determinação e a inconsequência da minha vida.
Aos outros, a todos os outros, ofereço histórias e rimanços e um sentido diário e constante – bem hajam.
Caramulo, noite de 15 de Fevereiro de 2007
III. LA SITUATION LITTÉRAIRE AU PORTUGAL, FÉVRIER 2007, SEIZE
Rogar para arrogar-se:
sistema de vida.
Arrogantecagar-se:
dar-se a alma malparida.
Ind’oje li eu no Público
restos e rastos, do plágio são,
tais que, como o pêlo púbico,
encaracolam a explicação:
que não senhor, que não senhora,
que tudo é coisa natural,
que a vaca na manjedoura
copia o boi – e que é normal.
Será normal. Pois tudo bem.
O orelhudo diz que é do Poe.
Abençoada Santa Mãe.
Copy, paste, enter, delete e voe.
Merci, Chinês. Pour le Vol et les Voleurs.
Caramulo, noite de 16 de Fevereiro de 2007
IV. CORRUPCÃO
O meu cão Faruk
e o meu cão Mondego
andavam os dois em sossego.
Chegavam os cheiros
do ar farejeiros
róbinude, líraljonyfreituque.
Cedo na manhã
xerife notingã
colmilhava pernil porcum.
O meu cão Faruk
e o Mondego meu cão
pareciam os dois ser só um.
Cheira a corrupcão
co’a puta mais rasca
loureiro à porta da tasca.
Cheira a Portugal
muito a gente gosta
que nos pinte tinta de bosta.
Cheira a judiaria
faz-me fama mouraria
tira-me a estrela de cima.
Meu par cachorrão
é de bela e senão
o ferro se corta à lima.
Ó país de caca-caça
império contrataca-taça
perdido por cem melhor que mil.
S’a caravana passa
mesmo com tanta trapaça
há que pôr rede no canil.
Caramulo, noite de 17 de Fevereiro de 2007
V. SUMAS ABSTRACÇÕES
Estes dias serão somados em Inverno 2006-07.
Por enquanto, não. São apenas um dia, uma noite.
Esforço-me por não levar a conta além disso.
Eu, que não faço senão acumular somas datadas.
Tenho uma receita de sopa de tomate, que exerço.
Carnes, vegetais, fósforos, gás, panos
juncam o universo da cozinha na tarde de domingo
novo. Tenho livros e discos e janelas.
O sol é fresco, as árvores ramalham ao favónio.
A estrada que não desço, desce sozinha ao vale.
Aos outros mundos do mundo. Subi uma vez.
Na cozinha, o vapor forja subsistências.
Depois da sopa, tomo as rédeas do meu trabalho.
Fulgura de giz-múndi a nuvem cartográfica.
Milhões de palavras (mas só duas ou três pessoas)
ruminam como vacas infinitas no pradécrã.
As músicas filtram o silêncio benemérito
da minha cabeça: esferas descidas à minha vida.
Esta aldeia não tem sinos, santos crepusculares sim
– e apenas. Não há pessoas. Há horas.
Numa pausa de café e nicotina, a visão: um carro
sem tripulantes desce aos soluços por uma ravina.
Depois, primeiro plano de loja de bicicletas.
Depois, tiro o olhar desses impérios sem imperadores.
Somos mais longos do que a hora. Tambores coam
o ar dos túneis cursivos. Torno itálica a boca,
inclinado para o primeiro vinho da tardinha.
Líquenes amusgam o ar frio da montanha balsâmica.
Acredito na potência da mais calma fúria.
Acredito na coerência dos loucos das ruas.
Como vamos? Vamos indo pela sombra,
vamos somando abstracções.
Caramulo, tarde de 18 de Fevereiro de 2007
VI. PARA O LEITOR DUPLO
1. O LEITOR DUPLO
Se pudesse dispor de uma vida paralela que nunca dormisse, queimá-la-ia em leituras para que esta vida, única, me não concede tempo.
Desta, nesta, teria a vida – e vivê-la-ia.
2. A MACACA DE FERRÉ
Pepée,
a macaca de Ferré,
é
todos os
cães que tive.
3. MANUEL BARATA
(n. Mata, Castelo Branco, 1952)
Fez as pazes com a guerra,
fez as pazes com a paz.
É de homem.
4. L. COM C. NO N.
O povo, leigo, garantia
que o mal de que sofria
era cancro-no-nariz.
Fosse-o ou não, foi-se.
Chamava-se Luís.
5. PRURIDO DE OUVIDO
Ensurdece, a cera, soalhos e ouvidos.
Patitas coagula de insectos.
Recuerdos tornam-se obsoletos:
em paz só jaz que se dá a olvidos.
Digo: esquece o cocó das afeições
e o mijo grelhado de putilusões.
Um homem que esquece, depois aparece:
leva a mão e coça-os.
Caramulo, tarde de 20 de Fevereiro de 2007
VII. PORTÁTIL, O OLHAR DO MEU CÃO
(um soneto económico)
O coração das crianças é economia.
Corrompe, faz constar, iça e abate.
Dispõe a circulação do chocolate.
Não tem qualquer ergonomia.
As mãos das mulheres são tesouraria.
Com(s)tam, fazem contar, cortam e abatem.
Estou sempre à espera que me matem.
Conto com isso, qualquer dia.
Portátil é o olhar do meu cão.
Eu o porto, tombado o serão.
Já era crepuscular, antes de o ter.
Agora o já tive, não volto a conter
as lágrimas mansas p’lo cão-criança
que economizei p’ra poder viver.
Caramulo, tarde de 23 de Fevereiro de 2007
VIII. CAPITAL É BRUXELAS
(para o Fernando, naturalmente)
Não é possível registar o viver todo.
Coisas escapam-se pelas ruas quando não vemos.
Tenho um irmão sazonal.
Bélgica, França, Inglaterra: operário.
Itália, Alemanha, Espanha: passou.
Eu não fui ver.
Eu fiquei aqui.
Vejo agora, escrevendo-o.
Teve frio, comeu arroz, saiu a ver os domingos estrangeiros
dos outros gajos europeus – são diferentes,
os domingos, os gajos.
Até o arroz é diferente – as palavras que o compram.
Tenho sentido isso, quando escrevo.
A minha poesia é boletins meteorológicos.
Se chove, quanto chove, quando chove.
Tenho um irmão sazonal.
Já o tenho visto por aqui,
na Bélgica.
Caramulo, tarde de 23 de Fevereiro de 2007
IX. TODO UM SONETO PARA UM VERSO SÓ
Substituí (há muito, agora reparo) os sítios
a que não voltarei por os que aonde nunca fui.
Não precisamos da doença para reservar geografia.
Basta-nos, para tanto, a malévola saúde.
Tenho um punhado de pessoas, não mais.
Fiz delas a humanidade toda.
Talvez conste da humanidade delas.
De duas, três, um punhado, talvez.
Vejo os jogadores no estádio. A luz é branca.
A multidão salga a voz nas arcas celeiras.
O instinto braveja contra a vida.
Já fui capaz de adiar ventanias, não mais.
Agora tudo é sempre nunca mais.
A frase correcta de um amigo é sempre em verso.
Caramulo, noite de 24 de Fevereiro de 2007
X. CAPR’OESIA
A mistura dos elementos não é da responsabilidade
dos poetas.
Os que o são.
Não.
A cabra é mais feminil,
às vezes,
do que compete às reses.
Está nela a putaria,
não na poesia.
Caramulo, noite de 24 de Fevereiro de 2007
XI. CHAPA
(para o senhor José Carvalho ( Zé Bate-Chapas),
por ter sido pai de um Amigo meu)
Há muito lhe passara perto a morte,
não a morte fácil dos versos mas a outra,
a que se esconde à luz dos versos,
e depois aparece para gasto de telefonemas,
poemas, gasóleos e surdos impropérios.
Assim entende e estende a morte
seus impérios.
Até a bate-chapas
e a pais sérios.
Caramulo, noite de 24 de Fevereiro de 2007
XII. GRAMÁTICA
Tenho alguns adjectivos – é quase tudo
quanto me sobra do bom tempo.
O bom tempo era quando o sol
adjectivava sozinho o mundo
e as coisas do mundo.
Tenho algumas subordinadas – meninas
que não ajudei a comer
(nem pensar nisso)
e trabalham hoje de criadas
em estações de serviço.
Preposições – tenho tantas
quantas as necessárias,
involuntárias,
formigas-operárias,
da línguas de todos os dias
latinos,
nocturnos e pequeninos.
Verbos, já não tenho.
Envelheço bem.
Fui, vai, não vem.
Nem mal, nem bem.
Vai.
Caramulo, noite de 24 de Fevereiro de 2007
1
Não te deitarás no sal da terra
– nem no serás.
Confirma-te: sem piano
nem puta emprestada.
Ainda bem:
não sabes tocar piano
nem putas.
2
Falta pouco?
Falta muito?
Que falta faz a falta
que falha?
3
Mordes o gomo da laranja
com dentes acrílicos.
Não perdeu a laranjeira
seu fruto,
dando-o embora a morder
a dentes de dentista.
Que era laboratorial
teu futuro,
só tu aventaste que não.
4
Que não era p’r’assim ser.
Que um monte de raparigatas
somava trechos de cal
por montes urbanizáveis.
Que só os futuros não eram
amáveis.
5
Uma vez na vida hei-de
receber de novo
o nada a escrever.
Pelos pulmões de novo
o ar novo que cresce
de baixo dos albatrozes.
Nenhum empréstimo.
Dádiva nenhuma.
Só o próprio mér(d)ito
de ter sido vivo
até morrer.
E de nada ter ficado a dever.
Caramulo, noite de 10 de Fevereiro de 2007
II. ÁREA DE SERVIÇO – Nota e Aviso
Julgo dizer correctamente quando digo que para Alexandre O’Neill o contrário de “vida” não era “morte”. Era a “vidinha”. Li uma entrevista que ele concedeu não muito tempo antes de morrer. Disse-se “meio morto”. Estava, de facto, muito doente. Retive sobretudo aquela oposição vida/vidinha. Eu era jovem, então, e aprendi.
Ainda hoje considero menos má do que o ramerrão burguesóide dos habitantes de capoeiras, por mais condóminas. Não me sinto superior a essa gente cinzenta. Sou, apenas, diferente dela por clara, marcada e vincada opção. Arbítrio meu. Pago um preço alto por isso, em certas áreas de serviço da minha vida. Mas a liberdade moral compensa-me. A minha sexualidade nem é escabrosa, nem católica. O meu consumo é individual. A minha raiva é propósita e despropositada, depende do objecto. Tão depressa sou ocorrido por uma composição lírica de (a)parente (d)existência, como por uma catilinária cospe-bílis de efeitos redentores.
Não vivo a “vidinha” tão execrada pelo O’Neill – isso é que não. Já confundi e já me deixei confundir. Quando me fui algo abaixo, recolhi à oficina e regressei. Também é preciso, entanto, repudiar. É também necessário renegar. Já fiz isso – e isso continuarei fazendo, sempre que a pusilanimidade alheia me turvar os olhos como uma mosca afogada numa gota de azeite. É-me indispensável dizer puta-que-os-pariu até aos que não são filhos de putas. E já o disse. Repeti-lo-ei, sempre que essas “vidinhas” ameaçarem o sentido, a determinação e a inconsequência da minha vida.
Aos outros, a todos os outros, ofereço histórias e rimanços e um sentido diário e constante – bem hajam.
Caramulo, noite de 15 de Fevereiro de 2007
III. LA SITUATION LITTÉRAIRE AU PORTUGAL, FÉVRIER 2007, SEIZE
Rogar para arrogar-se:
sistema de vida.
Arrogantecagar-se:
dar-se a alma malparida.
Ind’oje li eu no Público
restos e rastos, do plágio são,
tais que, como o pêlo púbico,
encaracolam a explicação:
que não senhor, que não senhora,
que tudo é coisa natural,
que a vaca na manjedoura
copia o boi – e que é normal.
Será normal. Pois tudo bem.
O orelhudo diz que é do Poe.
Abençoada Santa Mãe.
Copy, paste, enter, delete e voe.
Merci, Chinês. Pour le Vol et les Voleurs.
Caramulo, noite de 16 de Fevereiro de 2007
IV. CORRUPCÃO
O meu cão Faruk
e o meu cão Mondego
andavam os dois em sossego.
Chegavam os cheiros
do ar farejeiros
róbinude, líraljonyfreituque.
Cedo na manhã
xerife notingã
colmilhava pernil porcum.
O meu cão Faruk
e o Mondego meu cão
pareciam os dois ser só um.
Cheira a corrupcão
co’a puta mais rasca
loureiro à porta da tasca.
Cheira a Portugal
muito a gente gosta
que nos pinte tinta de bosta.
Cheira a judiaria
faz-me fama mouraria
tira-me a estrela de cima.
Meu par cachorrão
é de bela e senão
o ferro se corta à lima.
Ó país de caca-caça
império contrataca-taça
perdido por cem melhor que mil.
S’a caravana passa
mesmo com tanta trapaça
há que pôr rede no canil.
Caramulo, noite de 17 de Fevereiro de 2007
V. SUMAS ABSTRACÇÕES
Estes dias serão somados em Inverno 2006-07.
Por enquanto, não. São apenas um dia, uma noite.
Esforço-me por não levar a conta além disso.
Eu, que não faço senão acumular somas datadas.
Tenho uma receita de sopa de tomate, que exerço.
Carnes, vegetais, fósforos, gás, panos
juncam o universo da cozinha na tarde de domingo
novo. Tenho livros e discos e janelas.
O sol é fresco, as árvores ramalham ao favónio.
A estrada que não desço, desce sozinha ao vale.
Aos outros mundos do mundo. Subi uma vez.
Na cozinha, o vapor forja subsistências.
Depois da sopa, tomo as rédeas do meu trabalho.
Fulgura de giz-múndi a nuvem cartográfica.
Milhões de palavras (mas só duas ou três pessoas)
ruminam como vacas infinitas no pradécrã.
As músicas filtram o silêncio benemérito
da minha cabeça: esferas descidas à minha vida.
Esta aldeia não tem sinos, santos crepusculares sim
– e apenas. Não há pessoas. Há horas.
Numa pausa de café e nicotina, a visão: um carro
sem tripulantes desce aos soluços por uma ravina.
Depois, primeiro plano de loja de bicicletas.
Depois, tiro o olhar desses impérios sem imperadores.
Somos mais longos do que a hora. Tambores coam
o ar dos túneis cursivos. Torno itálica a boca,
inclinado para o primeiro vinho da tardinha.
Líquenes amusgam o ar frio da montanha balsâmica.
Acredito na potência da mais calma fúria.
Acredito na coerência dos loucos das ruas.
Como vamos? Vamos indo pela sombra,
vamos somando abstracções.
Caramulo, tarde de 18 de Fevereiro de 2007
VI. PARA O LEITOR DUPLO
1. O LEITOR DUPLO
Se pudesse dispor de uma vida paralela que nunca dormisse, queimá-la-ia em leituras para que esta vida, única, me não concede tempo.
Desta, nesta, teria a vida – e vivê-la-ia.
2. A MACACA DE FERRÉ
Pepée,
a macaca de Ferré,
é
todos os
cães que tive.
3. MANUEL BARATA
(n. Mata, Castelo Branco, 1952)
Fez as pazes com a guerra,
fez as pazes com a paz.
É de homem.
4. L. COM C. NO N.
O povo, leigo, garantia
que o mal de que sofria
era cancro-no-nariz.
Fosse-o ou não, foi-se.
Chamava-se Luís.
5. PRURIDO DE OUVIDO
Ensurdece, a cera, soalhos e ouvidos.
Patitas coagula de insectos.
Recuerdos tornam-se obsoletos:
em paz só jaz que se dá a olvidos.
Digo: esquece o cocó das afeições
e o mijo grelhado de putilusões.
Um homem que esquece, depois aparece:
leva a mão e coça-os.
Caramulo, tarde de 20 de Fevereiro de 2007
VII. PORTÁTIL, O OLHAR DO MEU CÃO
(um soneto económico)
O coração das crianças é economia.
Corrompe, faz constar, iça e abate.
Dispõe a circulação do chocolate.
Não tem qualquer ergonomia.
As mãos das mulheres são tesouraria.
Com(s)tam, fazem contar, cortam e abatem.
Estou sempre à espera que me matem.
Conto com isso, qualquer dia.
Portátil é o olhar do meu cão.
Eu o porto, tombado o serão.
Já era crepuscular, antes de o ter.
Agora o já tive, não volto a conter
as lágrimas mansas p’lo cão-criança
que economizei p’ra poder viver.
Caramulo, tarde de 23 de Fevereiro de 2007
VIII. CAPITAL É BRUXELAS
(para o Fernando, naturalmente)
Não é possível registar o viver todo.
Coisas escapam-se pelas ruas quando não vemos.
Tenho um irmão sazonal.
Bélgica, França, Inglaterra: operário.
Itália, Alemanha, Espanha: passou.
Eu não fui ver.
Eu fiquei aqui.
Vejo agora, escrevendo-o.
Teve frio, comeu arroz, saiu a ver os domingos estrangeiros
dos outros gajos europeus – são diferentes,
os domingos, os gajos.
Até o arroz é diferente – as palavras que o compram.
Tenho sentido isso, quando escrevo.
A minha poesia é boletins meteorológicos.
Se chove, quanto chove, quando chove.
Tenho um irmão sazonal.
Já o tenho visto por aqui,
na Bélgica.
Caramulo, tarde de 23 de Fevereiro de 2007
IX. TODO UM SONETO PARA UM VERSO SÓ
Substituí (há muito, agora reparo) os sítios
a que não voltarei por os que aonde nunca fui.
Não precisamos da doença para reservar geografia.
Basta-nos, para tanto, a malévola saúde.
Tenho um punhado de pessoas, não mais.
Fiz delas a humanidade toda.
Talvez conste da humanidade delas.
De duas, três, um punhado, talvez.
Vejo os jogadores no estádio. A luz é branca.
A multidão salga a voz nas arcas celeiras.
O instinto braveja contra a vida.
Já fui capaz de adiar ventanias, não mais.
Agora tudo é sempre nunca mais.
A frase correcta de um amigo é sempre em verso.
Caramulo, noite de 24 de Fevereiro de 2007
X. CAPR’OESIA
A mistura dos elementos não é da responsabilidade
dos poetas.
Os que o são.
Não.
A cabra é mais feminil,
às vezes,
do que compete às reses.
Está nela a putaria,
não na poesia.
Caramulo, noite de 24 de Fevereiro de 2007
XI. CHAPA
(para o senhor José Carvalho ( Zé Bate-Chapas),
por ter sido pai de um Amigo meu)
Há muito lhe passara perto a morte,
não a morte fácil dos versos mas a outra,
a que se esconde à luz dos versos,
e depois aparece para gasto de telefonemas,
poemas, gasóleos e surdos impropérios.
Assim entende e estende a morte
seus impérios.
Até a bate-chapas
e a pais sérios.
Caramulo, noite de 24 de Fevereiro de 2007
XII. GRAMÁTICA
Tenho alguns adjectivos – é quase tudo
quanto me sobra do bom tempo.
O bom tempo era quando o sol
adjectivava sozinho o mundo
e as coisas do mundo.
Tenho algumas subordinadas – meninas
que não ajudei a comer
(nem pensar nisso)
e trabalham hoje de criadas
em estações de serviço.
Preposições – tenho tantas
quantas as necessárias,
involuntárias,
formigas-operárias,
da línguas de todos os dias
latinos,
nocturnos e pequeninos.
Verbos, já não tenho.
Envelheço bem.
Fui, vai, não vem.
Nem mal, nem bem.
Vai.
Caramulo, noite de 24 de Fevereiro de 2007
2 comentários:
Tenho a mania de ler de uma assentada...percebes? Claro que sim. Nada fácil de te ler, também já o disse. Mas um prazer. Repito-me.
Sem palavras porque as utilizas tu todas e da melhor maneira.
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