13/06/2006

Tomada de Posse

O que não tenho, invento:
detenho em vento.
Possuo uma duna lembrada.
Capataz sou de brancos operários:
cinco dedos desta mão.
Tenho uma segunda edição (1926) de
Andam Faunos pelos Bosques.
Quatro cigarros, ainda, no maço.
Uma chávena vazia, uma tarde íntegra.
Um boião de mel e uma gata.
Um nome igual ao Pai.
Bruscas, masturbatórias incursões
na memória almóada:
correrias, quero dizer, de cavalasno
pela planilembrança.
Uma garrafa-termos com chá,
Conan Doyle, um pássaro no quarto.
Farei escritura das palavras que
não vieram já por não ser ainda
tempo delas.
Faço usucapião de meu corpo.
O tempo virá, um pouco mais.
Sopa, fogo de lenha, gata no quintal.
Mar congelado, criogénico cardume.
Leitaria de neve na serra,
álgido estio.
Outonumano: invernomem.
Raparigas solteiras de chinelinho de borracha a
daradar.
Baile beneficente, ceguinho acordeonista pai
de organista filho, mais tarde.
Vês, vês? Estou vivo sem ti.
A posse é possível.
Crio como uma ferida - pa'larvas.
Nada te dou: tudo
te abandono.
Falo com propriedade.
Não mais a puberdade gónada
me fará seminar.
Educo a febre há tantos anos,
sabes.
Possui-se um pássaro
vendo-o.
Na cidade, outrora, eu fui.
Era num beco junto ao teatro.
Cheirava a terra de vasos e a
chilras menopausas.
Já então era
muito violento não amar,
não ser capaz.
O vento enchumaçava a gabardine paterna.
Oh sim, claro que sim, então:
John Steinbeck, Manuel da Fonseca.
Água na lameira descendo? - café com leite.
O rapaz crocitava. Lambia sal.
Atraía-o a maresia de café torrado
à porta da mercearia.
O feijão a litro.
A chuva nos ombros.
A aguadilha espermática.
A tangerineira pintada de perfume.
Ávida, almorávida vida:
correrias sempre.
Às seis da manhã, uma vez,
reclinado numa cadeira campista,
um banho de lua
rente à roseira da Mãe.
O cão amarelo, apreensivo de
tanta poesia, ciracheirando
marcas aduaneiras de próprio mijo.
Falo desse milagre: todas
as palavras, todas
as combinações.
Vê-se que as pa'larvas
do futuro sempre
vieram
entretanto.
Aqui estão: ei-las.
Confesso, húmido de alegria, primaciais
toques em frente:
Vitorino Nemésio evocando
Herculano e Camilo;
Carlos de Oliveira afogando
abelhas;
Soeiro Pereira Gomes afluindo
galos e laranjas;
Bocage trepando
caralhaz contumácia;
Martim Codax gravado
em pastoril VHS;
Dinis Machado estocando
a pura forma romanesca;
Teixeira de Pascoaes saudadando
a universal serra;
e Fernando Pessoa (faz hoje 118 anos que nasceu) pedindo
ao barbeiro aguardente.
Isto são posses.
Valem casas, moedas, austrálias.
Transporto isto.
Se me angustia a pastelaria,
850 km de costa marítima
compensam.
Moles vísceras gangrenam notícias
más.
Aflições telefónicas avisam
horários de enterros.
Amigos apagam-se como velas.
Carago.
Nectarino, sumarento, o meu
rapaz segue.
Ufano, flâmulo, peripatético,
gárrulo, bandeirante, trívio,
ínvio, zuco, lábil, o meu
rapaz prossegue.
Damos, nós, cegos,
nós cegos: fundimos
mas confundimos,
em mulher,
penetração com posse.
Valha-te a tosse:
nada, nem alguém, se
possui.
Adentrar coralinas húmidas
não equivale a guardar
almas.
Para isso foram criados
os bancos, as seguradoras.
Só é o homem.
O homem é só
o ab-de-homem.
Cascalhosas romarias agostam
o nacional verão: organistas
cardiológicos, de cegos filhos, colunam
baques (traques) de dois-por-quatro.
Sente-se na cama a bailação.
Às onze da noite, despedido o sono,
o serôdio rapaz faz abandono
da cama e vai ao
baile.
A aldeia, lampadária de furta-cor,
adra foguejeiras e cervetórios.
Ancam ao piso ninfas rurais.
Viúvas de palimpséstica ruga
cadeiram lonas no pó da dança.
Passa isto, passa o verão.
Sobrevém a colheita, o mosto em-
bebedor de moscas.
Chuvilhas tracejam o ditado da luz.
Videiras enroxam o ferro.
Magro cão esburga magro osso.
Tomo disso posse. Ouço
(sanguínea, lenta)
a sanguinolenta relatação de
homem mata mulher e depois
voluntário viúvo por instantes
mata-se.
Gelo, geleia, gelosia:
o belo é uma coisa fria.
Paris e Londres cheias de pretos.
Lima e Assunção molhadas de brancos.
Internet no Alaska e
nazis na Noruega, filhos de
1940.
Irrupções candelárias.
Ousar dias por calendária ousadia
- só não usa quem teme.
Ele diz ao rapaz:
"Teima sempre."
O rapaz tem-ma.
Ele tem.
O que ele não tem,
inventa.
Nisto, o vento.




Caramulo, tarde de 13 de Junho de 2006

4 comentários:

Anónimo disse...

Faz-me tão bem ler-te...
Não há palavras...São todas tuas.
Bj.

José Antunes Ribeiro disse...

Caro Daniel,

"O que não tenho, invento:
..........................
Nisto, o vento."
Grande poema, grande poeta...Para que conste nesta pátria do futebol, fado e Fátima!

Manuel da Mata disse...

Caro Daniel,

O poder de inventar é o grande poder dos poetas. E ousar, também, acrescentaria eu.
Já sou teu leitor. Pela mão do Zé Ribeiro.

Um abraço,
Manuel Barata

Daniel Abrunheiro disse...

Quem vem do Zé Ribeiro, só pode vir (por) bem. Obrigado, Manuel.

Canzoada Assaltante