detenho em vento.
Possuo uma duna lembrada.
Capataz sou de brancos operários:
cinco dedos desta mão.
Tenho uma segunda edição (1926) de
Andam Faunos pelos Bosques.
Quatro cigarros, ainda, no maço.
Uma chávena vazia, uma tarde íntegra.
Um boião de mel e uma gata.
Um nome igual ao Pai.
Bruscas, masturbatórias incursões
na memória almóada:
correrias, quero dizer, de cavalasno
pela planilembrança.
Uma garrafa-termos com chá,
Conan Doyle, um pássaro no quarto.
Farei escritura das palavras que
não vieram já por não ser ainda
tempo delas.
Faço usucapião de meu corpo.
O tempo virá, um pouco mais.
Sopa, fogo de lenha, gata no quintal.
Mar congelado, criogénico cardume.
Leitaria de neve na serra,
álgido estio.
Outonumano: invernomem.
Raparigas solteiras de chinelinho de borracha a
daradar.
Baile beneficente, ceguinho acordeonista pai
de organista filho, mais tarde.
Vês, vês? Estou vivo sem ti.
A posse é possível.
Crio como uma ferida - pa'larvas.
Nada te dou: tudo
te abandono.
Falo com propriedade.
Não mais a puberdade gónada
me fará seminar.
Educo a febre há tantos anos,
sabes.
Possui-se um pássaro
vendo-o.
Na cidade, outrora, eu fui.
Era num beco junto ao teatro.
Cheirava a terra de vasos e a
chilras menopausas.
Já então era
muito violento não amar,
não ser capaz.
O vento enchumaçava a gabardine paterna.
Oh sim, claro que sim, então:
John Steinbeck, Manuel da Fonseca.
Água na lameira descendo? - café com leite.
O rapaz crocitava. Lambia sal.
Atraía-o a maresia de café torrado
à porta da mercearia.
O feijão a litro.
A chuva nos ombros.
A aguadilha espermática.
A tangerineira pintada de perfume.
Ávida, almorávida vida:
correrias sempre.
Às seis da manhã, uma vez,
reclinado numa cadeira campista,
um banho de lua
rente à roseira da Mãe.
O cão amarelo, apreensivo de
tanta poesia, ciracheirando
marcas aduaneiras de próprio mijo.
Falo desse milagre: todas
as palavras, todas
as combinações.
Vê-se que as pa'larvas
do futuro sempre
vieram
entretanto.
Aqui estão: ei-las.
Confesso, húmido de alegria, primaciais
toques em frente:
Vitorino Nemésio evocando
Herculano e Camilo;
Carlos de Oliveira afogando
abelhas;
Soeiro Pereira Gomes afluindo
galos e laranjas;
Bocage trepando
caralhaz contumácia;
Martim Codax gravado
em pastoril VHS;
Dinis Machado estocando
a pura forma romanesca;
Teixeira de Pascoaes saudadando
a universal serra;
e Fernando Pessoa (faz hoje 118 anos que nasceu) pedindo
ao barbeiro aguardente.
Isto são posses.
Valem casas, moedas, austrálias.
Transporto isto.
Se me angustia a pastelaria,
850 km de costa marítima
compensam.
Moles vísceras gangrenam notícias
más.
Aflições telefónicas avisam
horários de enterros.
Amigos apagam-se como velas.
Carago.
Nectarino, sumarento, o meu
rapaz segue.
Ufano, flâmulo, peripatético,
gárrulo, bandeirante, trívio,
ínvio, zuco, lábil, o meu
rapaz prossegue.
Damos, nós, cegos,
nós cegos: fundimos
mas confundimos,
em mulher,
penetração com posse.
Valha-te a tosse:
nada, nem alguém, se
possui.
Adentrar coralinas húmidas
não equivale a guardar
almas.
Para isso foram criados
os bancos, as seguradoras.
Só é o homem.
O homem é só
o ab-de-homem.
Cascalhosas romarias agostam
o nacional verão: organistas
cardiológicos, de cegos filhos, colunam
baques (traques) de dois-por-quatro.
Sente-se na cama a bailação.
Às onze da noite, despedido o sono,
o serôdio rapaz faz abandono
da cama e vai ao
baile.
A aldeia, lampadária de furta-cor,
adra foguejeiras e cervetórios.
Ancam ao piso ninfas rurais.
Viúvas de palimpséstica ruga
cadeiram lonas no pó da dança.
Passa isto, passa o verão.
Sobrevém a colheita, o mosto em-
bebedor de moscas.
Chuvilhas tracejam o ditado da luz.
Videiras enroxam o ferro.
Magro cão esburga magro osso.
Tomo disso posse. Ouço
(sanguínea, lenta)
a sanguinolenta relatação de
homem mata mulher e depois
voluntário viúvo por instantes
mata-se.
Gelo, geleia, gelosia:
o belo é uma coisa fria.
Paris e Londres cheias de pretos.
Lima e Assunção molhadas de brancos.
Internet no Alaska e
nazis na Noruega, filhos de
1940.
Irrupções candelárias.
Ousar dias por calendária ousadia
- só não usa quem teme.
Ele diz ao rapaz:
"Teima sempre."
O rapaz tem-ma.
Ele tem.
O que ele não tem,
inventa.
Nisto, o vento.
Caramulo, tarde de 13 de Junho de 2006
4 comentários:
Faz-me tão bem ler-te...
Não há palavras...São todas tuas.
Bj.
Caro Daniel,
"O que não tenho, invento:
..........................
Nisto, o vento."
Grande poema, grande poeta...Para que conste nesta pátria do futebol, fado e Fátima!
Caro Daniel,
O poder de inventar é o grande poder dos poetas. E ousar, também, acrescentaria eu.
Já sou teu leitor. Pela mão do Zé Ribeiro.
Um abraço,
Manuel Barata
Quem vem do Zé Ribeiro, só pode vir (por) bem. Obrigado, Manuel.
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