que tudo arda. Não percamos o
mistério. Isto é, vivamos. Mesmo
sem o amor televisivo e brasileiro,
vivamos. Em mercearias decerto
nos atenderá a senhora gorda, tão
sabedora de conservas, sabão, verduras.
Uma mulher muito lésbica de colete preto,
como um mandador de rancho, na gare de comboios.
Duas moscas em torno de seus malares sólidos.
Um tasco de bifanas e traçados, na
esconsa viela. Fados, navalhadas e
iscas em vinagre. Mais moscas.
Exulto, eu sei. É de ser Junho.
Tu, não sei não. Deixei-te cair na
gravidade, essa lei de maçãs.
Meia cambota faz de cinzeiro. Suponho
nem sempre bem. Quase sempre
atiro o verso, que adere e fixa.
Aqueles homens de chinelos, a unha
negra de nascença do dedo grande.
Pior: de calções e surrobeco, os joelhos
com pelagem, flácidas as barrigas
das pernas. E flácidas suas frases
portuguesas, brancas, gordas.
Os mansos dementes dos lares passeando sob
as árvores conventuais. Trila o grilo, rala o ralo.
O sol, branco de leite fervido, ainda
nos acode - a mim e ao que escreve,
autónomo, automático. Um pouco triste,
também, mas é de ter sido Maio
e já não ser.
Quanta beleza. Até a dos carros
estacionados. Casais casados sonham
na cama independentes sonhos. Longe,
a genealogia esquece seus tantos filhos. Atilhos
de gaze asfixiam o sangue do
joelho. Mármore e batatas fritas.
Idades clássica e de ter juízo.
Prefab Sprout, manhã cedo, no leitor
de cassetes do carro. Pastelarias e camião de rações.
A aldeia tem já semáforos: europeia
união, de tudo calibradora. Olha a merda: já nem há
anchovas, colheres de pau. Há
passarinhos, suas vísceras em colorau.
Quando amámos, entregámos o cacau
todo. Algum anjo canhoto se enojou
de nós, posto que no Brasil não há
anjos, só capítulos seguintes. Rico ama pobre.
Pobre rompe na vida. Gere fábrica?
É doutora. Tem filho secreto de
polícia militar que a violou. Coitada.
Em Lisboa, por esta hora, o Saldanha
há-de refulgir de comerciais a
gasóleo. Recordo a minha vida de
Lisboa. Longe da filha, tão perto de um
rio espanhol, eu tão perto de um
rio espanhol. A filha em Coimbra, guardada
por gatos e vasos de sardinheiras.
Celebremos ambos a coruscância: o que
escreve e eu, como nós fôssemos.
Górdios, cegos - nós. Nunca descartar
o conhecimento que salva: Ardenas, Verdun,
El Alamein, Odessa, Estalinegrado, Boers,
Christiania, Waterloo, Buçaco, Ourique,
Barcelona, Little Big Horn e Coimbra, onde
a filha e a Praça da Feira.
Resistir é um swing. Glenn Miller,
trombonista, morto à la Saint-Exupéry
em vol-de-nuit. Coisas aos quadradinhos.
No resto, cegueira voluntária: os idosos
dos lares clínicos fingindo que não
é nada, que não vão morrer nada.
Eu é que sei.
É preciso que o leitor não seja
um imbecil. Que se não deixe
foder, a menos que lhe paguem. E mesmo
assim, só exigindo um carinho de vez
em quando. Alvin Toffler, Henri Levy,
Maria Carrilho e Pinheiro Chagas:
cagar na merda aumenta-a, mas alivia.
Sorumbatismo, só em sozinhismo. No
resto, alegria. Cada bala mata um.
Você abusou, tirou partido de mim.
Verd'amarelo, verd'amarelo: matas
crianças de rua na rua. Hás-de ter uma
moral do caralho, Vera Lombardi, Bruna
Fischer.
De modo que a lusofonia. Muita
África e tal, mui boas intenções e naufrágio
de Sepúlveda. Rapazes brasileiros de
bigodinho à Errol Flynn mandando matar
os moleques que estiverem a mais para o
futebol de praia.
Nelson Rodrigues de direita até que o filho lhe doa.
Macarena e Maracanaã: bodas de
multiplicados peixes podres. Buenos
Aires, Escola de Mecânica, Borges
beijando o chão ensanguentado do
Chile antes de almoçar às cegas com Pinochet,
o Augusto.
É quase meio-dia. Tenho de me
ir embora. Eu depois volto, mas
isto tinha de ser dito. Na gare de
comboios, nenhuma lésbica já: o
tempo passa como comboios. Ainda
agora pensava nisto e já está escrito.
Viu? Sacou?
Caramulo, manhã de 6 de Junho de 2006
2 comentários:
Ufa e um...sorriso.
Fod@s... Uma realidade assim escrita remexe e amarga os mais profundos estados de espírito.
Mas faltando o sorriso, a paixão e o sonho... Mesmo que independente, custa ainda mais...
Enviar um comentário