1. XZ
Coimbra, noite de 5 de Dezembro de 2005
Palpititilações luminosas de município fililampam ao longo do rio e das autovias. Faz um frio que aperta o ar em torno de ferro. Carros piriluzem mínimos. Pobres-de-pedir ombreiam cartões-embalagens de fogões sem fogões dentro. Fitas de strapex pendem dos pobres como suspensórios de duro plástico agrafado aos pobres. Temperatura do ar: xis. Hora: zê. Autocarro carregado de fadistas conduzido à viola por homem de patilhas com caspa – passa no frio escuro da noite como uma árvore de natal deitada a preto-e-branco. Igreja antiga restaurada em centro comercial: bancas de florista, troféus & medalhas, snack, perfumaria, mercearia, chinês, cabeleireira. Ontem, hoje e amanhã. Escola nocturna: entrada e saída de trintões e quarentões em busca do liceu perdido. Gárgula do fontanário, mercado municipal fedendo a peixe e a tripas de couve, elevador dos ceguinhos da lotaria, previdência, cisnes, palmeiras chicoteadas por si mesmas, bancos nocturnos polidos por cus aposentados, avenida inclinada como um copo e uma boca, a praça republicana, o jardim lúgubre onde a pederastia coxeia o sexo abútreo e tristonho de um desejo por rotina. Paragem para uma chávena escaldada no café com nome grego, escadarias já antigas que abrem para o absurdo, absurdo não sei porquê, a evidência aí está. Globos cor-de-laranja haloados de pó de chuva, farfalhados pela ramaria das árvores mais circunspecta do mundo, passos teqteqteqteq na calçada, um pouco de fadiga muscular. Decidir-me pela direita, curvando depois à esquerda descendente como o comboio da canção, desembocando na garagem do sapateiro, depois na garagem do fruteiro, no papa curto, no S. Sebastião aliviado de flechas, sentindo já a paraplegia académica de la tradition, os volumétricos colhões d’el-rey D. Dinis, o território dizimado da antiga Alta. Nasceu por aqui muita gente, de X a Z.
2. O que É
Coimbra, noite de 5 de Dezembro de 2005
É o meu mundo.
Vou querendo outros.
Enquanto assim, menos mal.
3. Diagrama
Coimbra, noite de 5 de Dezembro de 2005
Extrema delicadeza no desenho
feito pelos pássaros no ar.
O mesmo a dizer das árvores,
com menos acção embora.
Os homens que trabalham na estrada
formigam de crude e máquinas.
Também desenham, por grosso
e atacado. Reservam forças para a
noite, para as mulheres, para
outros homens.
Tudo isto visto do cimo, dá um
diagrama mais do que apenas
humano. A arvorestação, o
picotado da passaragem, a
linha hominiviária.
É um diagrama, isso sim, muito
delicado: é um diagrama
extremo.
4. Conta
Coimbra, noite de 5 de Dezembro de 2005
Estamos por nossa conta
no espaço sideral
aberto ao infinito
além da escotilha do avião.
Inumeráveis nuvens-ovelhas
róseas-argênteas da eterna alba-noite.
Não é já a vida.
Não é a morte ainda.
É apenas a nossa conta.
5. O Leal Jardineiro
(para John Le Carré)
Tondela, 6 de Dezembro de 2005
Pode a tarde ser deserta,
Ser sombria e invernosa.
Tens a escrita pulsaberta:
Refulge e explode, feita rosa.
6. Relatório
Tondela, 7 de Dezembro de 2005
(Escrevo à noite, dedicatório, votivo.)
Perfumado ainda dos pinhais de ontem.
Visão perfuratória dos animais.
Cabelo contado.
Pele esfregada a sabão.
Frio concreto como cimento líquido.
Árvores mais densas.
Senhoras velhas mais velhas.
Roda dos dias amaciada pelo
deitar-cedo-cedo-erguer.
Inflamação no olho esquerdo
resolvida ao espelho, como
tudo.
Detroit continua a dois e 20,
por enquanto.
BT prepara Operação Natal&AnoNovo.
Alguma música (pouca) nos
interstícios das horas.
A paciência feita saber.
A amizade tida por certa
e a regularidade da caligrafia.
7. Saudades à Prima
Tondela, 7 de Dezembro de 2005
Cercada pela geometria implacável da vilacidade, a floresta primeva resiste, implacável também e mais ainda até. Sobreviverá aos incendiários, mais que ela combustíveis, e ao cimento. Tem a pedra do lado dela. O tijolo escaqueira-se como os ossos. O mar voltará a estas areias montanhosas e escuras. Sinto-o com nitidez, a milénios de distância (para trás, para a frente) o sinto. Nem me preocupa a eventualidade de ter razão. Estaremos, então (para a frente, para trás), devidamente disseminados pelas fluências combativas: o mar de nuvens-medusas, o horizonte de árvores-barbatanas, os ranchos de peixes falantes, as desaldeias de casas submarinas.
Calma: todas as saudades terão sido mortas.
8. Palavras Encruzilhadas
Tondela, 7 de Dezembro de 2005
O homem-silhueta parado-a na encruzilhada.
Vai-se embora o homem.
Fica a silhueta.
Nasce o Sol, o homem volta.
A Lua leva-a.
9. A Criação Húmida
Tondela, 7 de Dezembro de 2005
O homem molha a mulher
que absorve a hum(na)idade
do homem que buscou na mulher
a morte temporária do
orgabismo
e a encontrou.
Olhada
molhada
a mulher
que ama na cama
a carne de lama
do homem que quer
sente a trepadura
adentro de ela
da nova criatura
o novo homem-ele
a nova mulher-ela
que do abismorganiza
a trepadela.
10. Ração
Tondela, 7 de Dezembro de 2005
Por uma questão de economia emocional,
racionar a dor em porções de alegria.
E ir ao talho como à peixaria.
11. Teias
Tondela, 7 de Dezembro de 2005
No tálamo, enrodilhar
os olhos nas teias de várias
aranhas: os amores secos
como moscas.
12. Estação de Ferrovida
Tondela, 7 de Dezembro de 2005
Enquanto não é tempo do comboio
curtir a estação as estações
a primavera das revistas do quiosque
o inverno da cafetaria
o verão das mulheres que esperam de pé
o outono dos pássaros nas linhas de música dos telefones
Coimbra, noite de 5 de Dezembro de 2005
Palpititilações luminosas de município fililampam ao longo do rio e das autovias. Faz um frio que aperta o ar em torno de ferro. Carros piriluzem mínimos. Pobres-de-pedir ombreiam cartões-embalagens de fogões sem fogões dentro. Fitas de strapex pendem dos pobres como suspensórios de duro plástico agrafado aos pobres. Temperatura do ar: xis. Hora: zê. Autocarro carregado de fadistas conduzido à viola por homem de patilhas com caspa – passa no frio escuro da noite como uma árvore de natal deitada a preto-e-branco. Igreja antiga restaurada em centro comercial: bancas de florista, troféus & medalhas, snack, perfumaria, mercearia, chinês, cabeleireira. Ontem, hoje e amanhã. Escola nocturna: entrada e saída de trintões e quarentões em busca do liceu perdido. Gárgula do fontanário, mercado municipal fedendo a peixe e a tripas de couve, elevador dos ceguinhos da lotaria, previdência, cisnes, palmeiras chicoteadas por si mesmas, bancos nocturnos polidos por cus aposentados, avenida inclinada como um copo e uma boca, a praça republicana, o jardim lúgubre onde a pederastia coxeia o sexo abútreo e tristonho de um desejo por rotina. Paragem para uma chávena escaldada no café com nome grego, escadarias já antigas que abrem para o absurdo, absurdo não sei porquê, a evidência aí está. Globos cor-de-laranja haloados de pó de chuva, farfalhados pela ramaria das árvores mais circunspecta do mundo, passos teqteqteqteq na calçada, um pouco de fadiga muscular. Decidir-me pela direita, curvando depois à esquerda descendente como o comboio da canção, desembocando na garagem do sapateiro, depois na garagem do fruteiro, no papa curto, no S. Sebastião aliviado de flechas, sentindo já a paraplegia académica de la tradition, os volumétricos colhões d’el-rey D. Dinis, o território dizimado da antiga Alta. Nasceu por aqui muita gente, de X a Z.
2. O que É
Coimbra, noite de 5 de Dezembro de 2005
É o meu mundo.
Vou querendo outros.
Enquanto assim, menos mal.
3. Diagrama
Coimbra, noite de 5 de Dezembro de 2005
Extrema delicadeza no desenho
feito pelos pássaros no ar.
O mesmo a dizer das árvores,
com menos acção embora.
Os homens que trabalham na estrada
formigam de crude e máquinas.
Também desenham, por grosso
e atacado. Reservam forças para a
noite, para as mulheres, para
outros homens.
Tudo isto visto do cimo, dá um
diagrama mais do que apenas
humano. A arvorestação, o
picotado da passaragem, a
linha hominiviária.
É um diagrama, isso sim, muito
delicado: é um diagrama
extremo.
4. Conta
Coimbra, noite de 5 de Dezembro de 2005
Estamos por nossa conta
no espaço sideral
aberto ao infinito
além da escotilha do avião.
Inumeráveis nuvens-ovelhas
róseas-argênteas da eterna alba-noite.
Não é já a vida.
Não é a morte ainda.
É apenas a nossa conta.
5. O Leal Jardineiro
(para John Le Carré)
Tondela, 6 de Dezembro de 2005
Pode a tarde ser deserta,
Ser sombria e invernosa.
Tens a escrita pulsaberta:
Refulge e explode, feita rosa.
6. Relatório
Tondela, 7 de Dezembro de 2005
(Escrevo à noite, dedicatório, votivo.)
Perfumado ainda dos pinhais de ontem.
Visão perfuratória dos animais.
Cabelo contado.
Pele esfregada a sabão.
Frio concreto como cimento líquido.
Árvores mais densas.
Senhoras velhas mais velhas.
Roda dos dias amaciada pelo
deitar-cedo-cedo-erguer.
Inflamação no olho esquerdo
resolvida ao espelho, como
tudo.
Detroit continua a dois e 20,
por enquanto.
BT prepara Operação Natal&AnoNovo.
Alguma música (pouca) nos
interstícios das horas.
A paciência feita saber.
A amizade tida por certa
e a regularidade da caligrafia.
7. Saudades à Prima
Tondela, 7 de Dezembro de 2005
Cercada pela geometria implacável da vilacidade, a floresta primeva resiste, implacável também e mais ainda até. Sobreviverá aos incendiários, mais que ela combustíveis, e ao cimento. Tem a pedra do lado dela. O tijolo escaqueira-se como os ossos. O mar voltará a estas areias montanhosas e escuras. Sinto-o com nitidez, a milénios de distância (para trás, para a frente) o sinto. Nem me preocupa a eventualidade de ter razão. Estaremos, então (para a frente, para trás), devidamente disseminados pelas fluências combativas: o mar de nuvens-medusas, o horizonte de árvores-barbatanas, os ranchos de peixes falantes, as desaldeias de casas submarinas.
Calma: todas as saudades terão sido mortas.
8. Palavras Encruzilhadas
Tondela, 7 de Dezembro de 2005
O homem-silhueta parado-a na encruzilhada.
Vai-se embora o homem.
Fica a silhueta.
Nasce o Sol, o homem volta.
A Lua leva-a.
9. A Criação Húmida
Tondela, 7 de Dezembro de 2005
O homem molha a mulher
que absorve a hum(na)idade
do homem que buscou na mulher
a morte temporária do
orgabismo
e a encontrou.
Olhada
molhada
a mulher
que ama na cama
a carne de lama
do homem que quer
sente a trepadura
adentro de ela
da nova criatura
o novo homem-ele
a nova mulher-ela
que do abismorganiza
a trepadela.
10. Ração
Tondela, 7 de Dezembro de 2005
Por uma questão de economia emocional,
racionar a dor em porções de alegria.
E ir ao talho como à peixaria.
11. Teias
Tondela, 7 de Dezembro de 2005
No tálamo, enrodilhar
os olhos nas teias de várias
aranhas: os amores secos
como moscas.
12. Estação de Ferrovida
Tondela, 7 de Dezembro de 2005
Enquanto não é tempo do comboio
curtir a estação as estações
a primavera das revistas do quiosque
o inverno da cafetaria
o verão das mulheres que esperam de pé
o outono dos pássaros nas linhas de música dos telefones
13. Relógio
Tondela, 8 de Dezembro de 2005
O Sol, muito aberto, não subsidia a leitura, que se quer fechada em si mesma e penetrada, só, dos ventos molhados dos outros dias que rastejam chuvas horizontais sobre pedras negras. Hoje, assim não é. Pelo contrário. É tudo oiro novo. Parece que toda a gente lavou os carros e a cara. Famílias pastelejam com avidez e cafécomleitam-se em manada manhã cedo, rouquejam, grunhas, propinas e impropérios de ralhete alimentício-carnal, com celofanes de folhado farinhento adejando nas beiças lustrais. No fim, semelham gatarrões saciados de nutrição sustentando a sangue mole moscas diagonais nos vértices egípcios das orelhas. Para piorar muito o cenário, é dia feriado. Religioso, ainda por cima: da Senhora da Conceição de uma religião anticoncepcional.
Tenho algumas horas para ser feliz. Neste momento, uma figura chamada Justin Quayle viaja em busca da compreensão do passado. Revisita as acções de sua defunta esposa Tessa. Vou na página 192. Se chovesse, leria decerto mais depressa. Mas tudo tem o seu tempo. Hoje, o tempo é marcado, e aberto, pelo relógio do sol.
14. Ela-Leão
Tondela, 8 de Dezembro de 2005
Cabeleira de um fogo ensanguentado. Sardas no rosto de um desenho forte. Olhos preocupados com a savana interior. No exterior, roupa negra: seda e couro. Argolas de prata sinalizam a audição, dentes rijos marcam a natureza e a função predatória do animal. Recebe uma amiga com uma imitação de sorriso-delta. Agradece ao empregado o gesto de abaixar o estore. O sol incendiava-lhe, mais ainda, o sangue da cabeça poderosa: leão em chamas. Não leoa mas leão, dada a juba.
Tondela, 8 de Dezembro de 2005
O Sol, muito aberto, não subsidia a leitura, que se quer fechada em si mesma e penetrada, só, dos ventos molhados dos outros dias que rastejam chuvas horizontais sobre pedras negras. Hoje, assim não é. Pelo contrário. É tudo oiro novo. Parece que toda a gente lavou os carros e a cara. Famílias pastelejam com avidez e cafécomleitam-se em manada manhã cedo, rouquejam, grunhas, propinas e impropérios de ralhete alimentício-carnal, com celofanes de folhado farinhento adejando nas beiças lustrais. No fim, semelham gatarrões saciados de nutrição sustentando a sangue mole moscas diagonais nos vértices egípcios das orelhas. Para piorar muito o cenário, é dia feriado. Religioso, ainda por cima: da Senhora da Conceição de uma religião anticoncepcional.
Tenho algumas horas para ser feliz. Neste momento, uma figura chamada Justin Quayle viaja em busca da compreensão do passado. Revisita as acções de sua defunta esposa Tessa. Vou na página 192. Se chovesse, leria decerto mais depressa. Mas tudo tem o seu tempo. Hoje, o tempo é marcado, e aberto, pelo relógio do sol.
14. Ela-Leão
Tondela, 8 de Dezembro de 2005
Cabeleira de um fogo ensanguentado. Sardas no rosto de um desenho forte. Olhos preocupados com a savana interior. No exterior, roupa negra: seda e couro. Argolas de prata sinalizam a audição, dentes rijos marcam a natureza e a função predatória do animal. Recebe uma amiga com uma imitação de sorriso-delta. Agradece ao empregado o gesto de abaixar o estore. O sol incendiava-lhe, mais ainda, o sangue da cabeça poderosa: leão em chamas. Não leoa mas leão, dada a juba.
2 comentários:
Então, o Justin Quayle, portou-se à altura? Devias ver a forma como o Ralph Fiennes o encarnou...
Le Carré é grande!
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