05/12/2005

O Cedro e a Lua - XIII - 16 de Novembro de 2005

HSC, 16 de Novembro de 2005, 4ª feira, 8h27

O clarim do despertar foi às 6h40: JH e FP já conversavam. Juntei-me à conversa, fomos às abluções. HM deixou-se ficar mais um pouco: a gripe deixou-me para o tomar a ele. A banana do jantar serviu de desjejum. Expedição às laranjas com CMS: um êxito retumbante. Em fura-regras, fomos à cafetaria dos doentes para um primeiro café clandestino. Lixámo-nos, eram só 8h00 e o tasco só abria meia hora depois. Regressámos para partilhar as laranjas. No caminho, vi no chão uma borboleta mínima e de perfeita simetria branco-prata. Consultei os pratos da gata: limpos, depois dela, pelos canitos da madrugada. Cena triste: CMM anda a perguntar a cada um dos outros “como é que pode ser amigo”. E tentou vender a pulseira de prata (de prata como a borboleta do chão) a Ab. por dois euros. Desesperado por tabaco. Dei-lhe um cigarro. Mas é um sem-fim: privado de cigarros, só pensa em cigarros. Vou dizer-lhe que fale com a assistente social para que o que lhe resta de família lhe envie algum dinheiro. Disse-lhe agora mesmo. Suspendi a escrita e fui dizer-lho. Respondeu-me que tentou ligar ontem para casa e não conseguiu. Ab. não aceitou o negócio da pulseira. Emprestadei-lhe dois euros e vinte cêntimos para um maço de Detroit, novidade no mercado.

Mesma manhã, 10h44

Não sei quanta, nem que qualidade de, verdade há na história, mas conto-a na mesma começando por – Parece que o Carlitos, do Pavilhão 2 (Crónicos Vitalícios), viu os pais morrer num acidente. Daí que hoje ainda, tantas décadas depois, diga “…’nha Mãe, ‘nha Mãe!...”. Não sei. Dou-lhe açúcar, laranjas, compro-lhe bolos (os maiores do expositor da cafetaria), limpo-lhe a boca e o queixo e componho-lhe as calças e o casaco. É o posso fazer de maternal.

Tarde de 16, 14h19

Entre as 11h30 e as 12h30, Terapia Ocupacional no piso superior do Pavilhão 3. Comovida, a terapeuta informou-nos de que as sessões vão acabar, pelo menos ali, por “decisão superior de serviço”. A tarefa da sessão era uma folha branca dividida em seis: Solidão, Felicidade, Medo, Sabedoria, Velhice, Amor. Tínhamos de desenhar simbolicamente os conceitos. Houve resultados lacrimosos, pensativos, humanos, decisivos, irrisórios, inapressáveis, inapreçáveis. E solitários, felizes, medrosos, sabedores, velhos e amorosos. Agora, acabam. Depois, continuam. Noutra sala, noutras vidas, noutros alcoolismos.

Noite de 16, 18h32

Cena chata: por volta das 16h00, eu e CMS (que agora à noite me apresentou os filhos em visita) fomos, à revelia do regulamento, tomar café e comprar cigarros à cafetaria. Azar: ele teve uma visita não prevista duma assistente social da zona de residência, que perguntou por ele, que não estava, que chegou à psiquiatra, que telefonou para a cafetaria, que respondeu termos lá estado. Resultado: ambos, um de cada vez, pedimos desculpa aos enfermeiros de turno, que levaram piçada da médica-chefe. Ainda por cima, sem culpa nenhuma dos enfermeiros, posto não ter sido no turno deles que a nossa infantilidade foi praticada. Outra coisa (bem mais) degradante: apesar de ter comprado cigarros com o dinheiro que lhe emprestadei, CMM continua a tentar vender a pulseira de prata. Acho que JH vai aproveitar a pechincha. CMM quer “dois euros e um maço de tabaco” por ela. JH só quer dar os dois euros. CMM diz que me paga os dois euros e vinte cêntimos “sábado ou domingo”. Vai-se embora, diz ele, por ter falado com a médica. Mais do que alcoolismo, o problema é a longa depressão decorrente da separação/divórcio. Ele não queria, a ex-mulher não queria outra coisa. Ele quer voltar ao trabalho. É carpinteiro de cofragens na construção civil, não ganha mal. “Ganhas para o tabaco”, penso eu. Diz que não pensa tanto nas coisas más, trabalhando. Tem razão, claro. Vou ver do negócio. Degradante, degratriste negócio de prata de borboleta deprimida.

Mesma noite, trinta segundos depois

Negócio feito: por dois euros e um cigarro. JH declara:

– Ó Daniel, eu já cá ando há muito tempo! A pulseira é para a minha mulher.

E pronto. Afivela-a ao próprio pulso, em guarda de fiel depositário. Mankind must goes on, como dizem os de Setúbal.

Mesma noite, 19h30

A felicidade não resiste à análise.
O inverso é igualmente verdadeiro.
(Ou talvez ambos os raciocínios sejam da medicação.)

Mesma noite, 20h16


O Cedro e a Lua

O Cedro na noite.
No topo do Cedro, a Lua.
A Lua no topo do Cedro como
um pensamento de
banda desenhada.
Desenho o pensamento:
um homem-silhueta,
num terraço de alcoologia,
visto de costas.

1 comentário:

Gabriel Oliveira disse...

A cena é descrita de forma sublime.
As cenas descritas por ti são sempre sublimes. Como se fosses tu o feiticeiro musicado por Paul Dukas. Concerteza que conheces, senão, aqui fica a encomendação (das almas?).

Canzoada Assaltante