04/04/2022

REGISTOS CIVIS - 108 (segundo parágrafo)

 

Era pela alva, chegava em púrpur’anil o barco-correio. No quarto da sobreloja que eu então habitava, surdia baixinho a radiofonia: Mahler, primeiro; Seixas, depois. Eu despertara muito cedo, saciado de me fingir defunto. Preparei chá forte, comi um ovo, tomei dois dedos de conhaque-nacional. À cabeceira, os sonetos da Espanca, a trágica irmã-de-seu-irmão. Enleado daquela autoridade que resulta da indiferença (não digo desdém) das/pelas coisas minhas coevas, era só por parlapaliteraturice que me acudia o intróito – Era pela alva, chegava em púrpur’anil o barco-correio. No patim do meu prédio, vigorava um festão de hortênsias. O nome de tais flores recordava-me sempre (e aqui nada minto, pois que a mais casual menção ou o mais efémero avistamentos delas me o recorda) a pungente história do atropelamento mortal de que, uma eternidade antes, fôra vítima uma menina de cerces vinte anos, Hortênsia chamada, bonita, operária, irretornável. Escrever-lhe o nome é, em meu imo, como matar a fome com água. Entristura-me, põe-me merencório, sentimentalona-me, esfrangalha-me o viço. No ano em que meu Pai nasceu, 1917, parece que Florbela deixou o marido, largando de Évora para Lisboa. Eu, nesse então, ainda me não sobrealojava, sozinho como um cão-de-louça numa exposição de relógios, naquele recanto desta Cidade por onde António Nobre ocasionalmente ambulava ruminando o seu incipiente neogarrettismo pintalgado de parnasiana profissão-de-fé. O ano 1917, penúltimo da Primeira Grande Guerra, é todavia um marco-fanal para mim. Pessoa nem trinta anos perfizera. Proust era vivo & já publicado. Joyce também respirava. Descarregaram as malas-postais, os marinheiros desembarcaram, foram beber ao Café Estuário, a cujo limiar pontificava a vendedeira de caranguejos e de pichas & de percebes frescos como gotas marinhas em manhã pluvial. Aquele caso lancinante de Hortênsia terá sido há uns (pelo menos quase) cinquenta anos – já nem Florbela, nem Fernando, nem Marcel, olha, olha, olha. (Mas, ilusoriamente embora, mais retornável este trio do que a donzela operária que um camião esmagou ali perto de onde o meu Irmão Zé Daniel teve oficina artística.) E então:



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Canzoada Assaltante