28/04/2022
REGISTOS CIVIS - 110
Dísticos - 110
19/04/2022
REGISTOS CIVIS - 109
Gastão - 109
18/04/2022
REGISTOS CIVIS - 108 (conclusão)
© DA.
04/04/2022
REGISTOS CIVIS - 108 (segundo parágrafo)
Era
pela alva, chegava em púrpur’anil o barco-correio. No quarto da sobreloja que
eu então habitava, surdia baixinho a radiofonia: Mahler, primeiro; Seixas,
depois. Eu despertara muito cedo, saciado de me fingir defunto. Preparei chá
forte, comi um ovo, tomei dois dedos de conhaque-nacional. À cabeceira, os
sonetos da Espanca, a trágica irmã-de-seu-irmão. Enleado daquela autoridade que
resulta da indiferença (não digo desdém) das/pelas coisas minhas coevas, era só
por parlapaliteraturice que me acudia o intróito – Era pela alva, chegava em
púrpur’anil o barco-correio. No patim do meu prédio, vigorava um festão de
hortênsias. O nome de tais flores recordava-me sempre (e aqui nada minto, pois
que a mais casual menção ou o mais efémero avistamentos delas me o recorda) a
pungente história do atropelamento mortal de que, uma eternidade antes, fôra
vítima uma menina de cerces vinte anos, Hortênsia chamada, bonita, operária,
irretornável. Escrever-lhe o nome é, em meu imo, como matar a fome com água.
Entristura-me, põe-me merencório, sentimentalona-me, esfrangalha-me o viço. No
ano em que meu Pai nasceu, 1917, parece que Florbela deixou o marido, largando
de Évora para Lisboa. Eu, nesse então, ainda me não sobrealojava, sozinho como
um cão-de-louça numa exposição de relógios, naquele recanto desta Cidade por
onde António Nobre ocasionalmente ambulava ruminando o seu incipiente
neogarrettismo pintalgado de parnasiana profissão-de-fé. O ano 1917, penúltimo
da Primeira Grande Guerra, é todavia um marco-fanal para mim. Pessoa nem trinta
anos perfizera. Proust era vivo & já publicado. Joyce também respirava. Descarregaram
as malas-postais, os marinheiros desembarcaram, foram beber ao Café Estuário, a
cujo limiar pontificava a vendedeira de caranguejos e de pichas & de
percebes frescos como gotas marinhas em manhã pluvial. Aquele caso lancinante
de Hortênsia terá sido há uns (pelo menos quase) cinquenta anos – já nem Florbela,
nem Fernando, nem Marcel, olha, olha, olha. (Mas, ilusoriamente embora, mais
retornável este trio do que a donzela operária que um camião esmagou ali perto
de onde o meu Irmão Zé Daniel teve oficina artística.) E então: