Maria & mais
ninguém
Entre
princípios & fins do século passado, nasceu, viveu & morreu a senhora
minha Tia-Avó Maria da Conceição dos Santos.
Morreu
de fome – esclareço. Atenção: de fome, sim – todavia não por miséria, pois que
um cancro gástrico a extinguiu, condenando-a à impossibilidade de absorção
nutritiva & queimando-a, por dentro, de carvões frios cuja brasa gelada a
filtrou até à última transparência da cera. Eu vi isso acontecer, foi mesmo
assim, acreditai-me Vós por uma vez na vida.
Herdei
dela a cama-de-ferro em que dormi a adolescência, essa terra-de-mais-ninguém daquela
idade em que todos somos a única pessoa viva & importante do mundo.
A
minha Tia-Avó Maria era uma proscrita: nascida virgem & solteira, solteira
morreu mas sem já o outro atributo hímen-original. Consta que namorou
fisicamente algum inconsequente aproveitador de seus/dela mucosos vinténs. A família (minha: mas anterior
ao meu nascimento) soube dessa cópula infeliz & estéril – e nunca lhe
perdoou o devaneio, ostracizando-a inexoravelmente sem sombra de perdão: o
fascismo vestia chita.
Morreu
sozinha como um cão feminino numa casita miniatural de sem-marido, ou tugúrio de
boneca sem príncipe, que eu visitava aos sábados dos meus 17 anos sem atender a
cadastro sexual, sem inquisição católica & sem resquício sequer de censura
moralóide. Talvez me atraísse nela o meu próprio retrato futuro: este de cão
masculino auto-exilado em casota mental.
O
irmão dela, pai da senhora minha Mãe, nunca a visitou sequer uma vez, como eu
tantas vezes fiz: que a terra lhe seja, a ele tal bruto, pesada como chumbo.
E no entanto a
minha pobre Tia Maria permanece como a mais alta glória cinematográfica do meu
clã: é dela a voz agudinha que se ouve, em pregão cantado, no filme
portuguesíssimo chamado Capas Negras [de
1947, com realização de Armando de Miranda e protagonizado pelas maravilhosas
pessoas & vozes de Alberto Ribeiro & Amália Rodrigues, naquela cena da
Estação Velha (ferroviariamente falando, Coimbra-B actual)]:
era ela, na vida dita real, a vendedeira
de arrufadas de quem, na dita película, se escuta o chilreio de ave fininha.
Recordo
ante Vós a casa-de-boneca que era a dela: ao fundo do Lagar Velho, na
propriedade dos Rodrigues, e à esquerda de quem desce a caminho do Cardal cemiterial
onde há muito dormem (o sono de que se não acorda) os meus Pais & o meu
Irmão, dava para uma eira gretada de ervas sem jardineiro – mas além da qual
vicejava uma horta farta miraculada pelas humílimas verduras da terra nutriente
& portuguesa: couves, nabos, o episcopal & rubicundo tomate, a terna
& tenra alface, a leira de batata gorda que os porcos adoram e os humanos
não desestimam.
Entrava-se
naquele casinhoto celibatário pela cozinha imediata, acabando-se de imediato a
visita no quarto-de-dormir mais sozinho do mundo, esse onde branquejava, qual
cisne negro da solidão mais irremediável, a tal cama-de-ferro lacrada a
branco-cor-de-asa-de-anjo que depois herdei mas hoje pertence ao meu Irmão
Fernando, gémeo do extinto Jorge nosso.
Na
cozinha de livro infanto-juvenil para duendes, gnomos invisíveis haviam pregado
ripas de pinho, das quais se penduricavam utensílios cozinheiros de
menina-velha: o pucarito esmaltado (como esmaltado no quarto o bacio), o
tachito breve para aqueles arrozes-brancos que provisionam o jaquim frito, a panela mínima em que
ela, da horta, fervia a couve em ração de anã, a faiança cromada de rosas
cerâmicas abrilhantada pelo filete-de-ouro do pintor-porcelanista anónimo que o
senhor meu Pai toda a vida foi – e a colher-de-pau do tempo da Senhora Dona
Maria II. A todo este enxoval presidia a litografia glauca que perpetuava a
efígie do senhor Papa Paulo VI.
Paulo
VI veio à Cova da Iria em 1967. Foi pelo meio-século da falcatrua fatimista. Na
cozinha da minha Tia, porém, e sem que sumopontificemente o pudesse ele
augurar, o Papa presidia também ao vero pretexto que a casa de Maria da
Conceição dos Santos me levava cada sábado: namorar T., sobrinha do senhorio. Essa
adorável T. era uma rosa vertical erguida a partir de dois caules-pernas,
factor anatómico que a volvia flora ambulatória. De olhos enormes como lagoas
expostas a um luar de prata para que ainda não fora inventado adequado
firmamento noctívago, manteve-se pura & ilusória à maneira daqueles
natalícios globos de cristal que basta agitar para que a neve & o Natal suspendam
perpetuamente os sais e os flocos da mais pueril felicidade eterna. (É certo
porém que, no viço nubente, T. acabou casando-se numa cidade estranha com um rapaz
fininho, católico como ela, cujas presteza & decência até hoje eu seria
incapaz de emular – de modo que.)
Tinha-lhe
passado a fome terminal: de modo que inumámos entretanto a senhora minha
Tia-Avó em tão campa tão rasa (ou tão rosa) quão os já nonagenários três nomes
dela para ninguém. Levei-lhe papoilas ao mármore.
Tenho
pensado entretanto na casita que ela deixou devoluta. Talvez se T. voltar
desquitada, não sei, sobrinha que continua do senhorio, ali ao Lagar Velho, não
sei, sei lá, lá onde a eira, a horta, os fantasmas das bonecas e o pucarito de
esmalte, tudo a que eu aporia logo a cama-de-ferro que um dia destes o meu
Irmão Fernando vai ter de me devolver, talvez, não sei bem, Maria.
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