Diário da primeira
semana marciana de 2018
Quinta-Feira, 1 – Felizmente há chover, embora alguma pontual violência
dos elementos humanize de mais a possibilidade de tudo se perder num repente.
Na estação-de-serviço defronte, os estandartes da promoção-desconto-litro-combustível fremem como virgenzinhas que
tanto sabem ao que vão como ao que(m) lhes há-de vir. Primeiro dia de Março:
zune o poder eólico, o céu é chumbo negro, corre de estanho o estranho rio,
vale mais ficar em casa a quem tem uma. (Nem toda a gente tem uma.) O Inverno
vigora com justiça plena. De sudoeste, uma força aérea invencível carrega gelo
consigo. Os penhascos rangem como viúvas ainda disponíveis. O mar traga os
afoitos inconscientes. Trump quer os professores com pistolas. A Síria está
bem, obrigado. Calor no Árctico, neve em Bragança-Vila Real-Chaves-Viseu.
Certo. O meu Amigo Manuel M.M. telefona-me para almoçarmos juntos um dia
destes. Sinto-me gratificado pela demanda: somos amigos há quase 39 anos.
Recolho-me: o briol já aperta mandíbulas
em torno dos ossos cinquentenários (upa, upa).
Sexta-Feira, 2 – É dia de Porto-Sporting. De nada mais falam as
televisões da parvónia. Não sei por que chamam “mau” ao tempo: chove ouro, para
mim; para mim, é pão que chove. O grande chumbo de ontem ferra ainda o céu de
hoje. A cameleira da praceta, que o sol februário fez florir precocemente,
tenta não se deixar despir de todo pelo assédio ventoso: mas há já pelo chão as
inumeráveis páginas-violetas de suas folhas-lilases. É verdade: a luz parece toda
feita de sombra, isso é verdade – mas não é com(o) tristura que assimilo a
invernácea condição do dia. Não, isso não. A terra babuja de água boa, as
raízes bebem fartamente, o verdor ainda não ardido deflagra no ar qual postal
de seiva instantânea. Nisto, trovoada: um fósforo imenso & mudo, primeiro;
segundos depois, o fragor de móveis arrastados na casa de Deus. Fracamente a
cameleira diz não ao ar movediço, de
súbito reforçado por esses populosos descampados. O tempo fala. O Tempo, também.
Dizem-nos coisas – nem todas más, aliás. Espero tão-só que, logo, Porto &
Sporting empatem.
Sábado, 3 – Estreia absoluta na minha vida: cortei o cabelo a
alguém. Esse alguém, nascido a 11 de Janeiro de 1959, é o meu Amigo Jorge C. Vive
sozinho num apartamento quase exíguo e é dono de um pente-lâmina eléctrico. Ele
mesmo escolheu no dispositivo a velocidade “pente-3”
(acertos & retoques finais a “pente-zero”),
sentando-se depois, de toalha-babete sob o queixo como um bambino veterano, de
costas para a janela do terraço. Vacilei um pouco, a princípio:
responsabilidade assustadora. Devagar, porém, lá lhe fui desbastando &
devastando o crânio. No fim, a coisa não ficou mal: pareceu-nos a ambos que era
atavio ex-capilar digno q.b. para voltar com dignidade à recruta militar. Como
disse, eu nunca tal houvera feito. Foi poupança de seis, sete, talvez dez euros
até, no barbeiro profissional. Enquanto o tonsurava, pensei em fixar o episódio
por escrito – pode ser aqui mesmo.
Domingo, 4 – Nunca simpatizei com domingos: o vazio existencial é
menos disfarçável, talvez/decerto por isso mesmo. (“Tinha dias e noites idênticos, mas o que mais lhe pesava eram os
domingos.” – J.L. Borges, in O Livro
de Areia). Recorro à “omnipotência” da escrita para o dar por terminado à
nascença.
Segunda-Feira, 5 – Por instância do meio-dia, um breve dilúvio benigno
sitia a Cidade. O ar, varejado a vapor frio, volve-se glauco. A grelha pluvial,
harpa sem mesura, aponta-nos a insignificância física nossa. Eu, sob escarlate
toldo de lona, miro & aguardo. Lixo urbano é arrastado pela torrente das
sarjetas. Agarradas sempre aos inúteis chapéus-de-chuva, já pessoas levitam a
alguns metros de altura. Depois, Deus (ou o Diabo por Ele) põe-se na
brincadeira: a primeira nesga de sol dá primeiro no campanário da Igreja de São
José, fazendo-a bronzear a prima meia-hora da tarde. Envernizados pela plúvia
rija, os cedros & as laranjeiras daquel’além tão antiga mansão senhorial
reverberam como olhos sadios. Entretanto, das catorze pessoas içadas aos ares
pela intempérie de há pouco, só doze voltam à terra: duas aproveitaram a boleia
– ou para morrer ou para migrar, o que dá no mesmo. Digo eu daqui, nas lonas,
escarlate & toldado.
Terça-Feira, 6 – Hoje é dia natalício (1927) do gigante Gabriel García
Márquez (m. 17 de Abril de 2014). A esse descomunal Colombiano devo muitas horas
muito felizes, mesmo (ou sobretudo) nos anos mais tristonhos. Por contraponto, anos
bons foram aqueles que me viram contemporâneo & companheiro deste moço aqui
mesmo, o Paulo C., que de repente, e ao cabo de mais de 30 anos, encontro no
autocarro matinal. O Paulo está fisicamente óptimo. Noto-lhe todavia certo ar
fatigado. Ocupa-o & preocupa-o a vida, decerto – como a (quase) todos nós.
Foi porém uma breve alegria revê-lo. Apeei-me duas paragens (ou dois
parágrafos) depois. Oxalá nos revejamos algures, nem que apenas daqui a mais
três décadas.
Quarta-Feira, 7 – Não sei: nem como vai ser para mim esse amanhã, nem
como foi para o meu Leitor esse ontem – o Jornal sai às quintas, eu envio a
crónica às terças. Só sei que São José badala, precisamente agora, nova
meia-hora: para mim, passada; para o meu Leitor, futura. Outra brincadeira do
Diabo, enfim. Ou do Compadre de São José por Ele.
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