Rui & Ana
Era
mais já que meã a manhã de terça-feira, 13 de Março de 2018, quando me
telefonou um Amigo a dar-me conta da morte de outro Amigo. Pior ainda: era uma
morte por suicídio. Ainda mais grave: foi um suicídio ferroviário exactamente
no mesmo local da linha onde, a 29 de Maio de 2016, voluntariamente se dera à
morte uma menina de 18 anos. A tragédia em toda a sua negrura: essa menina era
filha deste meu Amigo agora terminado ele também. Ana, ela; Rui, ele. Nestes
quase dois anos, o Rui lutou quanto pôde contra a dor – até deixar de poder. Ou
de querer – não sei. Duvido de que alguém possa saber.
Sei
isto: antes do telefonema, a minha manhã individual acontecia inofensivamente.
Muito cedo no dia novo, eu descera em segurança não titubeante uma ínclita
ladeira de bairro decente. Dispunha de moedas confortáveis para a chávena de
café inauguradora do dia, o caderno de capas pretas albergava já a
crónica-para-ser desta edição (em que referia Rilke & o Dr. Pedro
Canavarro, entre outros tópicos ribatejanos), o autocarro veio à hora certa,
nada de transcendente que não imanente. Apeei-me não longe do hospital,
recolhi-me àquele Café muito limpo onde, há sete anos, gastei o interlúdio do
velório da minha Mãe, retomei o meu Rilke, revi a crónica que esta semana já
não vai ser, devo ter sido mais ou menos feliz até às 11h13m: foi então que o
J. me telefonou com a má-nova da passagem-de-nível, a má-hora da terminação
voluntária do Rui – com aquilo, enfim, que tanto me magoou e magoa. Mas que,
confesso, me não surpreendeu.
Não
me surpreendeu porque o esperei desde a primeira hora do acontecimento de 29 de
Maio de 2016. Não conheci a menina do Rui. O pai sim, conheci-o. Era cinco anos
mais novo do que eu. E eu, como toda a gente de que agora me lembre, adorava-o.
Era de uma inteligência desarmante. Aquele olhar fulgurava de entendimento
imediato das coisas do mundo. Na mocidade, fôra um exímio jogador de andebol. Em
2014, pude reencontrá-lo numa reunião de “velhas-glórias” daquela modalidade em
que ele foi, de longe, o melhor de todos nós. Éramos então vivos todos. Ele
brilhou: como (desde) sempre. Jogámos um bocadito, comemos um bocadito,
gostámos todos uns dos outros um bocadão. Nada permitia prever aquilo da filha
dele dois anos depois.
Eu
tenho duas Filhas: tenho, não – a
quem pertenço. Não me passa pela ideia (e pelo coração muito menos) seja o que
for de semelhante. Não suporto, sequer minimamente, qualquer analogia. Dou-me
ao luxo do egoísmo: tenho pena da crónica que já não vai ser. Preferia
publicá-la milhões de vezes em vez desta. Havia cheias ribatejanas, havia
pessoas sem-abrigo, havia aquele crime de Twickenham à portuguesa, havia a
comédia triste & non-stop da
EN-114-Santarém-Almeirim, havia citações de Rainer Maria Rilke, havia o jovem
octogenário Pedro Canavarro, havia o lixo em Minde, havia o nabantino Mouchão
ardendo a frio de poluição fluvial, havia os juniores felizes do futsal do
Vitória Clube de Santarém, havia a tragifarsa costumeira deste pífio executivo
municipal santareno – havia isso tudo: mas só me restou o “tresloucado acto”, como antigamente se dizia, do meu querido &
perdido Amigo Rui. A realidade (s)urgiu outros lumes.
Cotejo:
às mesmas sete horas a que me levantei, era encontrado o corpo dele. Na mesma
aziaga circunscrição onde outrora a filha. É pertíssimo do casario um pouco
mais a norte onde nasceram a minha Irmã & o meu Irmão mais velhos. E sim,
eu disse “nasceram”, não disse “morreram” – esse pretérito só de nome perfeito com que o pai Rui julgou ser
possível voltar a ver & a viver a filha Ana.
Não
volta – mas finjamos todos que sim, que de novo está tudo bem, que a dor
arranjou maneira de cessar quando o novo dia nascia.
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