22/03/2018

SIM, ELE FUMA DEPOIS DE FAZER AMOR - Rosário Breve n.º 547 in O RIBATEJO de 22 de Março de 2018 - www.oribatejo.pt





Sim, ele fuma depois de fazer amor



Onde era o barbeiro velho, é ora a venda de fruta. O barbeiro morreu, a nora é a fruteira. O filho do barbeiro anda nos camiões internacionais desde muito novo, não quis o ofício do pai. Também muito nova, a mãe do camionista foi sem querer que deixou viúvo o barbeiro: qualquer coisa no coração, um repente roxo que lhe deu. A começar pelo filho, já quase ninguém se lembra dela, agora que também o barbeiro se matriculou na galeria do esquecimento. A sobreloja da frutaria está há muitos anos arrendada a um gravador-ourives que já não trabalha. Continua todavia a pagar a renda, não tem onde guardar os apetrechos do ofício. A sobreloja é portanto plena de relógios parados, ao contrário das ruas da vida, digo, da vila. O gravador descia muito ao barbeiro. Conversavam ócios lentos. Sabiam-se co-tripulantes da barca-de-outrora, essa no cais-só-de-ida. Foram sempre de outro tempo, nenhum calendário lhes acertava o passo. É uma sobrinha do gravador que vem pagar a renda, o velho ourives já não aparece. A nora do defunto barbeiro oferece-lhe uma sacada de pêras ou de nêsperas ou de morangos ou de damascos ou de figos ou uma melancia grande e rotunda como as mães, é conforme a idade do ano. Também se pode dizer que o preto-e-branco da barbearia é hoje uma profusa paleta de cores. A renda é paga em contado vivo, não há recibo, palavra é honra, honra nem de palavra precisa. O camionista conhece noruegas, dinamarcas, suécias, finlândias, estónias, letónias, estalinegrados. São a rota dele. Como o caracol, vive de galera-casca às costas. O ofício envelheceu-lhe os ossos. É um homem positivo. Não sofre de mariquices artísticas. Quando morrer como o pai, morreu como a mãe. Não é coisa que o sofra. Não trai a mulher, que o não trai. Só não têm filhos porque um dos dois é estéril. Nunca quiseram determinar pela certa qual. Cada quinze dias, três semanas, ele volta do nada, fica dois dias, às vezes quatro. A máquina lava-lhe a roupa enquanto eles reacertam o amor físico, às vezes tal acontece pelo raiar da aurora, é conforme calha a hora a que o camião dele aparece no pátio a resfolegar como um elefante hidráulico. Ela naturalmente cheira-lhe a ele a pomar. Ele naturalmente cheira-lhe a ela a auroras-boreais. Quando cessa o espasmo e ele sai dela para tactear na mesinha-de-cabeceira os cigarros, ela conta-lhe estar grávida – mas é da sobrinha do gravador-ourives que fala. A parição (ou a aparição) só é própria quando a nossa própria mãe etc. Certa vez, ele teve férias. A Sul, houve então para ambos uma primícia de Verão no pontão de madeira que adentra o mar. À ponta do pontão, fulgurava o coreto onde a graciosa filarmónica lhes concertou ominosas valsas & pasodobles felizes. Tiveram gelados de cone, farturas vivas como enguias fritas: e ante a eternidade do mar usufruíram do inapelável sabor a baunilha dos dias sem horas. E jantares de peixe na brasa com vinho branco apalhetado. E demoraram a lentidão da harmonia. Retornaram antes de a roda-gigante se encerrar ao estimado-público. Ele partia de madrugada para Norte, estranhamente pela Bélgica, esse reino duas vezes violado no mesmo século pelos teutónicos do costume. Foi então que ela lhe sugeriu que adoptassem algum órfãozinho, desses brinquedos portáteis que a caridade estatal e a escaninha Igreja disponibilizam depois de devidamente pedofiliazados. Ele não quis. O barbeiro tinha predilecção pela rádio nacionalista. O gravador-ourives era de outras escutas. O Plano Marshall não invalidou as ditaduras ibéricas. As amendoeiras foram & vieram florindo sua alienígena neve japonesa. Nisto, um perfume de fruta exposta: a chuva dando nas laranjas da banca sobre o passeio. A nora do extinto barbeiro descerrou o toldo. A chuva cessou logo a seguir, o sol abriu o escândalo absoluto da mais régia totalidade, a rua refulgiu de verniz lavado, eu próprio tive de semicerrar as pálpebras ante a radiação de tal tesouro instantâneo – pois que a luz reiterava nos limões o ouro mais ácido da terra mais aérea. Bojuda como um zé-pereira, a muito prenhe sobrinha do velhote da sobreloja vem hoje pagar ao barbeiro que já não há a renda parada de relógios que afinal não param – mas sim param se já nem um camionista faz à mulher um filho como deve ser –, queres assim ou mais curtinho?

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Canzoada Assaltante