Crónica chocalhante
Raramente
vou a hipersuperfícies comerciais. Aliás, nunca vou – levam-me. Não é por
religião, não é por intelectualite – é só porque não & apenas porque sim.
Quando quero ver rebanhos, vou à serra ou ao campo. A frívola transumância humana
não me atrai. Na terça-feira, todavia, lá fui a uma hipercoisa dessas. Fui, não
– levou-me a senhora minha mulher.
Era
o que tinha de ser: um antro plástico cromado, espécie de nave colossal cujas
entranhas estão fechadas ao sol. Roupa com palavras inglesas. Crianças clonadas
a partir de matrizes tv-formatadas. Casais-carrinhos, todos com evidências de
terceiras ou quartas-núpcias. Velhas pintadas como galos-de-Barcelos. Avôzinhos
que vêm trocar dois meses de reforma por um par de sapatilhas xispêtêó para o
netinho-nike. Máquinas rápidas. Salários-mínimos basbacando ante montras de
inutilidades faustosas. Cuecas de marca mais caras do que o meu fato de
casamento. Balões sem infância. Nenhuma igualdade, mas tudo igual. Tudo
idêntico, mas sem identidade. Aborreci-me.
O
paliativo foi ir para a zona dos fumadores, que é na rua. Os imortais, vulgo
não-fumadores, ficaram todos lá dentro, enferrujando nos curros inoxidáveis. Cá
fora, em torno & no subúrbio dos dois cinzeiros verticais de boca larga,
éramos sete.
Éramos
os sete: este Vosso servidor, a cavalo de um Camel; mais uma ruiva de mentira-coiffeur que chupava uma palhinha
branca de filtro asséptico; mais um gordo de ar triste que levava a
cigarrilha-creme à boca como se martelasse uma cavilha nos queixos; mais um
magriço com ar de médico arrependido de não ter estudado poesia trovadoresca
fumando Português Suave; mais um que
trabalha como acordeonista numa escola de cegos & fumador de Kentucky; mais uma mulata esplendorosa
(esplendor de rosa) de olhos verdes & de para aí uns sete metros de altura
mais uns dois de peito fumando Dunhill;
e ainda um rapazito inquieto que esperava acabássemos de fumar sem ser até à
beata para poder fumegar, ele também, qualquer coisita.
Era
a Modernidade. A Europa. A Social-Democracia-Cristã. O Futuro. O Bocejo. Valeu-me
a volta da mulher minha senhora.
Era
já o entardenoitecer. A brisa refrescava a visão de salgueiros beira-fluviais.
Decidimos não ir logo para casa. Por um destes caprichos que de motivo não
precisam & razão não usam, cirandámos a brando gasóleo pelas cercanias
pós-municipais. Almejámos um tasco rural onde costumam acender carvão debaixo
de peixe fresco. O vinho branco da casa, apalhetado de riscas oblíquas que
ouriçam o palato, espuma de capitosa epilepsia pela boca bojuda do jarro de
louça. Acampámos cá fora, entre grades vazias e operários cheios de fadiga sã.
Nisto,
deu-se música natural. Espreitámos: balindo chocalhos, um rebanho tornava às
cortes ao cabo de um dia de prado. Cão & pastor saudaram à passagem – o pastor
levando indicador e médio à boina, o cão mijando na roda da carrinha do
padeiro.
Pois.
É mesmo verdade. Raramente me deixo hipercoisificar. E não é por religião, nem
por intelectualite – é só porque nem mé nem meio mé.
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