Ver para querer
Revisito
com regularidade o século passado. Faço-o menos por nostalgia do que por
necessidade de uma arqueologia crítica do presente. É uma demanda – mas não uma
demanda temerária ou templária. Chamemos-lhe curiosidade.
Num
clarão, eis-me em pleno Terreiro do Paço. Mataram ainda agora o Rei. A
barafunda silva de espadeiradas aleatórias da guarda, de desmaios de senhoras,
do tropel caótico dos basbaques. A Rainha esbraceja o ramalhete de flores
furiosas. A cena sossega depressa – como tudo neste País.
Noutro
flash, ardem ao sol cru os
latifúndios cerealíferos a Sul. O território refracta a luz intensíssima: é uma
insolação de miragem, uma hipnose eléctrica, um estupor de sobrevivência.
Freima de cigarras. Pouquíssima gente – e uma árvore solitária aqui, outra
quase em Espanha já.
Amordaçadas
as carbonárias e as maçonarias, resultou em pleno o contragolpe católico
daquilo de Fátima. Ao frenesi esquizo da I República, sucede a paz podre do
cinzentismo totalitário. Embarca-se muito para outros morredouros: áfricas,
brasis, cus-de-judas sem retorno.
Mas:
Que será isto tão cedo na madrugada? Carros pesados saindo de Santarém. Aonde
será a romaria? Lisboa. Cercar os mouros. Contemporaneidade de cravos &
pides. Não matam o Rei, desta vez. Brandura. Ligeiro desassossego
dUSAmericanos, que o Carlucci e o Soares consertam depressa. Europa nos
Jerónimos. Primeiras hipersuperfícies. Jornais em sacas plásticas.
Inteligências idem.
Ano
2000. Afinal não acaba o mundo. Nem a superstição. Acabam só o século & o
milénio. Mais máquinas para comunicar, menos comunicação pessoal.
Ensimesmamento da tecnojuventude, autismo dos explorados. Um por cento a lixar
os restantes noventa e nove. Ná – melhor voltar ao ponto de partida.
Terreiro
do Paço. Levaram já para o Arsenal o Rei, o Príncipe Herdeiro e os dois
Matadores. Dão sais ressuscitadores às senhoras. Canadas de aguardente fervem
nas tabernas. No Tejo, as barcaças amarradas quási não ondulam. Sabe-se
difusamente que alguma coisa mudou para sempre. E essa coisa é o fim da
inocência que nunca houve.
Vem
a Grande Guerra. Mal preparada, mal equipada, lá vai a expedicionária
carne-para-canhão. La Lys. Heroísmos de pandeireta. Anonimato dos mortos aos
milheiros. Vem a nova Guerra Grande. Desta vez, a populaça abriga-se na frígida
sacristia em que o País se tornou. No campanário, o Mocho-Mor treme: que
(des)farão do meu fascismozito de missal? Nada. O penico ibérico das duas
ditaduras pode continuar a receber a mijoca da indiferença mundial.
Mas:
Que será isto tão cedo na madrugada?
Carros pesados saindo de Santarém. Aonde será a romaria?
Sim.
É com regularidade que revisito as catacumbas. O histórico não é morto. Nem é
palavra vã. É preciso saber como foi, como deveria não ter sido. E como pode
ainda ser.
Estabelecido
isso, é esfregar a vulgata da consciência nas fuças dos Alemães. A começar,
pelos Alemães. E a continuar por onde quisermos.
Se
quisermos.
Quando
quisermos.
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