09/06/2016

Rosário Breve nº 460 - in O RIBATEJO de 9 de Junho de 2016 - www.oribatejo.pt

Do estrangeiro quase pobre




1. Pobrezas

A gente é pobre, mas pobre não é gente. Pobre só é gente no Natal, quando faz de pobrezinho. Pobre vota, mas não conta. Pobre desconta.
Pode ser-se pobre estando rico. Mas ser pobre não enriquece. Rico pobre é o que se remedeia. Remediar-se empobrece muito mais no tal Natal.
Uma coisa é a gente ser pobre. Ser remediado é a mesma coisa. Mas estar rico não é o mesmo que ser rico. Ser rico pode ser estar pobre. Remediado é que não.
Remedeio não é remédio. Remédio é cara da coroa da doença. Doença é quando se pensa. Pensar empobrece, não remedeia nem enriquece.
Pobre vale mais quando não tem remédio. Menos quando tem remedeio. Quando tem remedeio, pobre é rico pobre.
Pobre rico é outra coisa. Vive remediado e morre pobre. Enriquecer a vida é empobrecer a morte. Mas remediá-la é matá-la porque é empobrecê-la. Como pensá-la é tudo menos remediá-la.
Pobre vota, mas não bota. Pobre perdigota. Pobre perde e gosta. Não gasta. Gosta. Remediado também gosta, mas bota. Bota rico porque vota pobre.
Que remédio.

2. Um estrangeiro quase feliz

Moro em Portugal desde que nasci, o que, naturalmente, não abona muito a meu favor. Sou mais um estrangeiro, portanto. Sim, é estrangeiro que me sinto. Manhã muito cedo, por exemplo, vou ao café do meu vizinho tomar a primeira chávena do dia. Como trabalho por conta própria, deixo-me estar. Ainda por cima, é permitido fumar. Porreiro. Então, ligam o televisor. É fatal: TVI. É fatal: o Goucha. Sou corrido por aquela portugalidade que me resulta inaceitável, intolerável, insustentável, incontornável. Cá fora, chove. Escolho outro sítio para escrever. Descobri um que, coisa rara, não tem televisão.
É o cemitério. Entro, escolho um jazigo com degraus, sossego o coração, trabalho. Ninguém me chateia. Estou ali na paz do Senhor. O vento dá nas árvores, as aves pontuam reticências pelo papel do céu, deixou de chover, uma farpa de sol fura o cartão das nuvens. Quando preciso de algum nome para uma personagem, dou uma volta pelo labirinto simples das sepulturas. O primeiro nome deste senhor aqui, o segundo daquele e os dois últimos desta tão saudosa e estremecida senhora. Como vou morar em Portugal até morrer, já ando, por assim dizer, entre eternas saudades. Pelo fim da tarde, concedo-me uma hora de faz-nenhum e descanso em paz. Dou pão aos pombos e aos pardais da praça, ouço o canto branco da fonte luminosa, vejo passar as mulheres dos outros, vou ao parque sentir os anjos que se fazem pedra quando são descobertos, desando pelas vielas húmidas, atravesso uma praça de chão de gravilha, leio os nomes das ruas, cheiro as bancadas de fruta que alegram as ruas de uma felicidade vegetal, cheiro o frango voador das churrasqueiras, aprecio o rosto cheio de dignidade dos cães, resisto à tentação de nunca mais parar, paro, tomo um doce num tasco geriátrico cujas paredes contam calendários de santos e posters do Sporting – e sou quase feliz, apesar de estrangeiro no, afinal, meu País.

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Canzoada Assaltante