Assunto com janela
Era um
homem que tinha e mantinha um gato. O gato era velho, o homem também. Ambos
respiravam, comiam e dormiam numa casa do extremo da aldeia. Pela chaminé
descia a voz dos pássaros. O gato, enroscado na cama de jornais, abria um olho e
recordava caçadas jovens. O homem tinha umas chinelas de pano onde guardava os
pés magros. No fogão a lenha, cozia um pedaço de carne entre feijões e couve.
Dividia o caldo e a carne com o gato, fazia café, que o gato não apreciava,
ficava-se a ver as brasas com um cachimbo de ébano na boca. No mundo de fora, o
vento levava a chuva e as folhas a passear pelas alturas.
Um dia, o
homem ficou muito doente. O gato percebeu logo. Enroscou-se-lhe aos pés e
esperou. O homem não melhorava. O tempo, sim. Cá fora, o sol fazia filmes com
os pinheiros, a brisa embebedava as andorinhas, o cheiro da resina tomava conta
da madeira perpétua das horas.
O gato
levantou-se, saltou da cama e procurou uma saída. As portas e as janelas
estavam fechadas. Todas elas. O gato falou, então. Emitiu aquela frase
crescente que sobressalta o coração. Há um tigre em cada gato. O homem não
reagiu porque estava todo ocupado a morrer. O gato cheirou a presença
autoritária do fim do homem. Eram velhos, tinham tido tempo para compreender que
se morre de tanto estar vivo.
Pulou
para a cómoda e atirou-se pelo vidro. Na rua, entre cacos, o gato olhou a
esquerda e a direita. Tinha de decidir-se por um lado.
Na cama,
o homem sentiu o ar que entrava pela janela partida. Louvou intimamente a
sabedoria do seu gato. Deixou-se estar, não lamentando nada, esperando apenas
que a sua noite interior arranjasse maneira de fechar aquela janela, levando-o
para longe de uma primavera que já não era para ele, uma primavera que,
exclusivamente, era um assunto de tigres.
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