Via melros, rumo à
Graciete & a Bruxelas
As palavras iniciais da minha crónica desta semana eram (e continuam a
ser) estas aqui: “Há melros pela linha
berma-fluvial que todas as manhãs palmilho em aparato discreto de gajo pastor
de palavras, à falta de melhor destino”. A hora de Bruxelas, todavia,
fustigou-me irremediavelmente tal bucolismo afinal tão lingrinhas quão
flúvio-ornitológico.
O terrorismo é a Noite-sem-(a)Manhã. Duas não-pessoas, convictas de que
o seu/delas deus é mais maiúsculo do que os blasfemos deuses (ou não-deuses)
dos outros, decidiram matar às cegas os cidadãos não-fundamentalistas que se
preparavam para o pecado de ir trabalhar. À hora a que escrevo (11h41m da
Terça-Feira-22-III-16), dezenam-se já os mortos & os feridos, em mais um
episódio (não será o último) de uma guerra córnea & intolerável que é, em
si, antítese a mais crua de Humanidade.
Os meus melros cedo-matinais, aturdidos pelo espavento genocida da
noite-sem-manhã belga, desertaram-me a página, proscénio de papel em que me
vejo ora sozinho à maneira de uma dessas folhas que, caduco-tombadas à terra,
querem ser árvore na mesma como a mãe de ramos. Ao cabo do trilho ribeirinho,
porém, vela ainda, valha-me isso ao menos, a Graciete Florista. O cesto a
seus/dela pés irrora o ar de sílabas cromáticas que são as violetas a dez
tostões, olhos que são os gerânios a doze, sínteses de neve que são as
gardénias (carotas…) a vinte-cinco, humildades vegetais feitas dálias a dezoito
- & papoilas que tingem o ar de vivíssimos beijitos escarlates pelo que o
freguês quiser dar.
(Isto deveria ser sempre assim, Graciete: sem bélgic’arabismos
percutores de pólvora.)
Valho-me, pois, da literatura possível para afugentar da manhã
portuguesa a minha indignação rábica. Ou (a)rábica. A Graciete vende também
xaropes de refresco aquoso: groselha, capilé, café, lima, canela abaunilhada.
Enverga, a Florista, uma blusa de chita com aquele florão de estampado que
antigamente se designava por “de
fantasia”. O home’ dela, que é
tão Vicente quão fraca gente, sei-o burgesso, calcanhar-rachado, canastrão,
cabotino, impertinente, grosso, acavalgadurado, jogador &
ecuménico-bagaceiro. Mas ela gosta dele e a outro não quer, quem sou eu,
ninguém, Romeiro.
Eu vinha-vos esta matina pelos melros, juro. São tão bonitos, os caraças
dos melros! Carvões vivos, ónixes alados, atiram-me aquelas bocas-de-ouro como
crisóstomos retóricos, finos de uma esperteza nunca manhosa, sabedores de
serem, eles-mesmos-consigo-de-si-em-si, mestres de pontuação no texto que é o
chão. Melros & Graciete: precisa cá um escritorzeco de beira-rio de mais
algum tesouro? Não precisa. Eu não precisozeco.
No Outono de 2002, estive em Bruxelas, lá onde se deu o terror de hoje.
Exerci o meu francês escolar para com os meus Belgas: a livreira que me vendeu
um belo Saint-Exupéry em seu vol-de-nuit,
o porteiro melancólico do hotel pago pelo grupo parlamentar convidante deste
Vosso criado, o cervejeiro-gato-pingado do célebre & mortuário bar “Le Cercueil” (“O Caixão”) da Rue des
Harengs (10-12) & a hospedeira de hálito mentolado e mamitas perfeitas no
avião do feliz regresso ao pátrio-mátrio Portugal meu & vosso, que era, a
hospedeira, redondilha, perdão!, redondinha como um heptassílabo açucarado.
NB: Já
V. disse, em outra crónic’ocasião, que a nossa morte já começou – lá onde
estivemos & aonde não voltaremos. Sei que a minha vida não voltará a
Bruxelas, nessa Bélgica dividida & estranha onde de quando em vez nascem
gigantes tipo Brel & Cortázar. A minha morte irrelevante não se conta,
porém, entre as dezenas de hoje, no aeroporto como no metro. A das vítimas de
hoje carece de remédio hoje.
De remédio & de vindicta inexorável. O endurecimento repressivo é
inevitável. Não é à totó-Trump que falo. Mas é que a pena-de-morte foi restabelecida:
por eles-monstros, não por nós. Não nos basta ser civilizados: temos de ser
civilizantes. Mas atenção: não iremos lá com espúrios esquerdismos de
capitulação: o cancro só extirpação merece. O terrorismo não é remediável com
reformatórios paliativos tipo bonzinho-guterres-de-calcutá – é com olho da
mesma boca & com dente do mesmo olhar.
Recentemente, perdi a amizade de alguém que, sentindo-me reticências
quanto à beatificação automática de tanto refugiado só-porque-sim, me
vilipendiou de estúpido para baixo. O
lobo com pele-de-ovelha não deixa de cheirar a mijo-de-lobo. E o lobo não é o
melhor amigo do homem-caniche. Perder esse ex-amigo (terrível justaposição, mas
justa) nada me é. Perder estas pessoas da manhã belga – isso despassara-me de
todo os carretos ornitolófilos.
Vou pelos meus melros. Fez-se entretanto toda de cristal, a manhã deles
& minha. Interflúvios eu & eles, vamos ter com quem? Com a Graciete.
Gerânios. Violetas não viole(n)tas. E uma papoila tingida de groselha viva –
viva como o sítio onde estamos & a que voltaremos.
Sem comentários:
Enviar um comentário