Uma flor para Dezembro
Desce-se
por uma vereda que serpenteia loteamentos baldios. Lixo plástico de um e de
outro lados da senda: coisas arremessadas dos raros carros que por aqui fumam
gasóleo. Há um olival esquecido enferrujando à Lua, parece prata encarquilhada.
O Governo procede a roubalheiras calculadas e calculistas, mas o Agosto é de
festejos, de foguetórios, de pessoas drogadas de sardinha & carrascão, não
posso passar o que de vida me resta a causticar o inatingível, que é remediável
mas que os Portugueses tornam e querem irremediável com o voto por clubismo.
Posso
acabar de descer. Os semáforos, como jóias volúveis, piscam passagem,
interdição, prudência. Atravesso no encarnado à Che Guevara e à patrão como o
Licor Beirão. Ao cimo da ladeira, um hiper: formigas humanas rodam-carrinham víveres
tipo marca-branca, no estacionamento carros
esbeiçados uns pelos outros como amantes desavindos, arrumadores hepáticos que
esbracejam à maneira de Cristos despregados de uma Cruz cravejada a seringas. O
Governo pune tudo e todos, mas há sempre o toiro bravo, o pimento no carvão, o
organista de kizomba, as marlenes de coxas gordas como insultos de sebo, a
população de péssima saúde oral cariando o ar da respiração colectiva, os televisores
estupidificando Cafés, Salas-de-Espera, Centros-de-Dia.
Subo para
uma zona chamada Casal Ferrão, território de um Amigo que desconfio anda a
escrever um livro tanto sobre o Ferrão como sobre o Casal. Há uma gasolineira
com lavagem-auto. Vazia como um sonho acordado de pessoa com Alzheimer.
Circundo-a sem esforço, passo aos pés do prédio onde no século passado morou a
Cecília, uma que era bonita e se casou aos dezoito anos com um gajo esquisito
que deve fazer parte do actual Governo, só pode, ninguém podia deixar por ali
uma bicicleta ou um vaso de sardinheiras que não levassem logo sumiço.
Adiante,
há um desfalecido estirado no chão, deve ser da bebedeira vascular cerebral,
acontece por aqui muito, o bagaço é a quarenta cêntimos, também esperavam o quê,
o INEM tem baldes com fartura.
Olho para
todo o lado em demanda de alguma coisa cronicável, mas nada: na pastelaria da
Paula Marreca as bolas-de-berlim de anteontem estiram línguas de pus de que até
as varejeiras têm nojo; na caixa do transformador da luz os rostos vítimas de
necrologia pasmam de anonimato com duas datas e muitòbrigadinhos a quem se
dignar comparecer ao desperdício de velas; e o Governo vai a votos e não há-de
perder por muitos porque o gajo-a-seguir e os próprios cartazes não se entendem.
Cheira tanto a sétimo-dia, que a própria graxa dos meus sapatos chia a finados,
é uma chatice mas pronto, a vida é assim, sobretudo no stândér do Anacleto, que vende mais matrículas falsas do que carros
verdadeiros, a gente sabe mas não bufa, com o anterior Governo fizemos o mesmo
e moita, com o próximo faremos o mesmo e carrasco.
Acampo no
Rodrigo dos Leitões, que já não é do Rodrigo mas do Anacleto e que já não
despacha leitões mas frangos tipo chiclete assados ao pé da arrecadação das
botijas de gás, ando farto de os avisar, ao Anacleto e à ucraniana de sotaque
goiano que ele arranjou numa espelunca de alterne, por causa da rebentação sem
ser atlântica, mas moita mas carrascão.
Às
tantas, telefonam-me mas é engano como a minha vida quase toda, tirando a que
falta. Faço de conta que do outro lado não desligaram e vou por aí a atirar
grunhidos discordes como o Octávio Machado, vocês sabem do que não estou a
falar.
Nisto,
faz-se noite e eu perdido-da-silva sem saber em que cidade estou, sei que
deveria ter mandado a crónica ontem mas é que me fazem saber que a minha rica sobrinha
Dani vai ter em Dezembro a Carolina Jorge Abrunheiro Zuzarte, o marido é Nuno e
muito bom rapaz, gosta dos Monty Python, o casalito tem o John Cleese em poster na sala-de-estar em formato de
ministro dos silly walks, é verdade
que lêem Dan Brown mas a minha felicidade é tanta, mas tanta, que até isso lhes
perdoo, lá vou eu ser tio-avô outra vez, sinto-me inflacionado, mais de éter do
que de matéria carbónica só resgatável pelo crematório, o Governo não lixa
tudo, há coisas de que até o Diabo se esquece, sobretudo se a quarenta
cêntimos, sobretudo vindo o Natal tornar-se uma Carolina Jorge flagrante e
fragrante como uma rosa de saúde.
Assim
seja.
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