Telefona-me o Estêvão
1. Como de costume, Agosto foi-me um
mês particularmente difícil: fiquei sem luz dias a fio e noites a novelo.
O
televisor cegou-se a si mesmo como um glaucoma inoperável.
As pilhas
do transístor oxidaram-se de tal maneira, que o mercúrio da realidade se
transformou, ou transtornou, numa virtualidade que roçava o insuportável: a
imaginação.
Tudo isto
para V. dizer que desconheço se José Sócrates continua ou não preso, se Jorge
Jesus treina ainda, ou já não, o meu Glorioso.
Tenho
outras palavras para dizer o mesmo: ando estranhamente feliz – como nunca supus
fosse possível. E por que motivo nunca o supus? Agora, já sei: porque a
ignorância é, por, com e em si mesma, a pedra-de-toque da felicidade.
Para
vê-lo, bastou que me faltasse a luz.
2. O truque é Setembro. Sem luz em
casa, não me falta a da rua. Falo da luz. Nunca de outra coisa falei, aliás:
esta coisa que entra no ser pela única parte do cérebro exposta à
inexorabilidade dos elementos – os olhos. Setembro é bonito. Tem seu quê de
áureo de moldura, qualquer coisa tipo catedral de manhãs, tontura de andorinhas
renitentes, qualquer coisa espectral de acção antifungicida. Maçãs. Nenhuma
televisão. Mosto. Nenhuma rádio. Alfazema. Alfa quê? Alfabeto.
Não sei
se sírios ou afegãos puderam fechar as fábricas de armamento que estão na
origem da essencial desumanização da Humanidade. Não tenho televisão. Não sei.
Mas sei. Setembro. Um momento, o telefone toca.
3. Atendo. É comigo. Segue-se a
transcrição:
– Alô, Daniel?
– Sim, faça favor…
– Daqui fala Deus.
– Qual dEles?
– Como
qual deles? Sou Uno.
– Como o Fiat?
– Qual Fiat?
– O Fiat Lux. A luz, sabe o Senhor? A da minha crónica. A da estupidificação. A do
bom Jesus quando era do Braga.
– Percebo-te. Acho que fiz filhos a mais.
– Tenho-os visto. Alguns são romenos. De dia
nos semáforos, à noite nos contentores do lixo. Podes escarrar na parede e
limpar as mãos nela.
– Só liguei para dizer que te amo.
– Obrigado, Stevie Wonder.
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