Palavreado esti(o)utonal (I & II)
I
História Lenta com Hortênsia mais
Dois Azúis
Aconteceu-me há momentos
uma coisa que vos quero contar.
Não vou escrever um poema
sobre o que se passou.
Vou só contar.
Por volta das seis da
tarde, saí para descansar os olhos.
Subindo ia eu pelo lado esquerdo
da avenida, o lado do Parque.
Do lado oposto, vinha
descendo uma mulher jovem.
Vestia uma blusa
azul-celeste.
Vinha longe.
Parei, voltei-me para o Parque
e tirei algumas fotografias verbais ao chão vegetal.
A luz era baça, outoniça
(ainda o é, posto que escrevo vinte minutos depois).
Quando me preparava para
colher a imagem de certa hortênsia azul que ali vigora em solidão, ouvi nas
minhas costas a voz:
– Boa tarde!
Ela tinha parado no
passeio dela para me dizer isto.
Virei a cabeça e mergulhei
naqueles totais olhos azúis (como a blusa dela e como a minha hortênsia).
Eu devolvi-lhe a boa-tarde
e levantei a mão em saudação.
Nunca a tinha visto por
aqui.
É uma rapariga doente.
Tudo dela emanava a outra
dimensão, a inexpugnável cosmogonia da doença mental.
Ela deu-se por satisfeita,
prosseguiu a descida nos seus passinhos chineses, Ariadne enrolando por si o
fio invisível da vida dela.
Eu fotografei a hortênsia
e subi até vós.
Eu e ela ficámos, por
assim dizer, quites:
nada posso fazer quanto à
loucura dela,
ela nada pode fazer pela
minha.
II
Fernando António Nogueira
Uma palavra pode ser uma
pessoa.
Há uma idade-maçã em cada
pessoa.
De novo, e descaradamente,
rói a infância-maçã a velha pessoa.
A velhice é o bicho
adentro a maçã-pessoa.
A pública noite vence a
particular de cada pessoa.
Vence-a pessoa a pessoa.
De mínimas vitórias é
feita a Grande Derrota da pessoa.
A minha noite não é a de
todos – é a da minha pessoa.
Vou falar-vos da minha
mais recente noite em pessoa.
Não vou escrever um poema
sobre o que se passou.
Vou só contar:
Sucedia ser pelo
entardenoitecer. Sob a latada adoçada pelo Estio e acossada já pelas
vespazzzzzzângonas do açúcar verde-âmbar-mel, eu ventilava-me em aura de buda
vestido. Da mata derredor, os últimos bichos urdiam deles, e do dia, a música
derradeira, essa que antecede o sono – ou o passamento – ou o pensamento.
A hora à aurora avessa
adentrava-me a mente à maneira de um nihil
obstat o mais generoso. Por conseguinte, a vida mesma coçava-me e
acossava-me, vespa ela também, o corpo escrevente à guisa de um imprimatur potest o mais facundo.
Escutei o chiar do
carro-de-bois do meu vizinho Nando-Tó Nogueira, cuja xiloacústica tracejava o
vidro do ar em limalhas de ponta-de-diamante. Sentia em perfeição a feição da
gravidez fecunda e jucunda das macieiras (Há
uma idade-maçã em cada pessoa etc.)
Nenhum incêndio
queimav’ardia o Bosque-de-Existir-e-Pensar-no-P’ra-Quê-Disso.
Era o sossego, era a
açucena, era a cegarrega, a doçura sensível, a seiva sedosa, a seda & a
sede saciada. Era a tal hortênsia. Sentia-me bem, a ponto de me não causar mal
a consciência de haver nascido sem que opinião me houvesse sido pedida.
Foi então que me chegou a
Palavra.
Em Pessoa.
2 comentários:
A doce loucura livra-nos do mal-maçã para não apodrecer. :)
Verdade, amiga Kari.
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