A Condição Litoral –
versos turísticos para crianças antigas
(Um dos amores invencíveis da
minha vida é a cidade marítima que se dá ao mundo com o nome de Figueira da
Foz. Fui feliz nessa terra feita de água e de luz. Justo é que estes versos, dela
tendo vindo, para ela sejam.)
Manhã de 9 (I) e tarde de 8 de
Outubro de 2007 (II e III).
I
Quando de
novo formos a ver o mar
que ele
lá esteja é tudo o que peço
pouco
pedir não é menos ter
se a nós
ao menos nos tivermos.
São
alguns gestos da claridade mesma das praias
um copo
de água na mão é uma bandeira de chuva
descalços
pelo areal tocamos das esferas a música
de antes
as gerações viveram tudo quanto viveremos.
Palacetes
e casebres da mesma areia erigidos
iguais
anseiam todos por praia voltar a ser
ao longo
da que maravilhosas coxeiem as crianças
como
gaivotas pequenas como grandes (n)aves.
Retornemos
à frescura dos bazares miniaturais
da
conventual praça onde as sacerdotisas peixeiras
oficiam
salmos e salmões e o mitológico polvo
das
profundezas da alma onde a memória nada.
Não
podemos estar sempre apenas aqui
por nossa
casa vazia correm crianças transparentes
somo-las
repetidos nos espelhos adúlteros
murchando
sem iodo no estanho tóxico.
Não
abjuremos a condição domingueira do desejo
lautos
farnéis conciliemos em seira de esparto forte
e o ar
solar em profundos haustos altos bivalves bebamos
resgatada
a botelha da molusca sombra fresca das rochas.
Ao mar me
portes de volta muito pois muito
tenho eu
enfraquecido de arbóreo mineral langor
sem outro
vit(r)al transporte que este dos versos
tossidos
manhã muito cedo em enxuta pastelaria.
Que o
vento litoral nos accione em levitação
como a
panos docemente enforcados em arame
desfraldadores
das acústicas vozearias da viração
e dos
transcoloridos hologramas de barcos ao longe.
E muito
morramos escalando-nos nus deitados
do homem
dos gelados a voz vinícola recebendo
recebendo
do homem da bolach’americana a solidão de tostão
e da Mãe
outra vez nova a água-de-groselha maravilhosa.
E tu não
sejas minha mulher sexual mas irmã minha
criança
um pouco mais nova menina antiga
precoce
reorientadora de minha vida em versos mal gasta
rapazito
dado e perdido em nostalgias temporãs.
Na praia
o favor farás de amar-me pelo que não fui
e sido
deveria ter quando éramos para ser
sempre
meninos de iodada derme e naturais dentes
uvas
trincando como a pérolas de vinho doce.
O clarão
da serra nos chegará florão do alto
a cal
dardejando de suas casinhas comoventes
pouco
nada nos dizendo não ainda a morte que tais
peças-pedras junta em dominó de esqueci’dados-inquilinos.
Do fundo
das águas exumaremos traineiras
com delas
os escuros pescadores da prata zichadores
pelas
frinchas descalafetadas escorrerá o salitre
e aos
fantasmas da lota abraçaremos fraternais.
Nos não
falte nem tanto mar nem amor tanto
por
sobrevivente turismo de crianças antigas nós
constantes
decerto de fotografias versicolores
em gama
de negro giz cinza e azul.
Longe do
mar em salas de velhas mães
somos já
rostos de galeria passe-partout
idênticos
marinheiros que perderam as graças do mar
em 1970
ano mesmo desse suicida Yukio.
Tudo o
que peço é a memória das uvas lavadas
em copos
de água transparente e fria
e o
coração poder descalçar de sua pedestre armadura
e
testemunhar na praia a memória futura.
Quando de
novo formos a ser vistos pelo mar
que lá
estejas é tudo o que peço
tudo já
tive e nunca pedi
senão que
estiveras quando eu já não.
II
Tenho
tanta pena de mais vezes não nascermos
está hoje
uma tarde convocatória de todo o ouro
a luz é
tão bonita que um gajo sorri sozinho
como
fazem os tolos como as crianças fazem
como às
vezes saltam os animais benignos no monte
e os
peixes felizes e amnésicos à flor do oceano
e os
cavalos imaginários das infâncias solares
como a
minha foi quando eu nascia todas as manhãs
às vezes
a Lua demorava-se manhã acima
como uma
memória futura um sol de cal
e as
árvores inclinavam-se em lapiseiro capricho
e no
inverno as cheias davam um pouco vontade
de morrer
de beleza de feliz desgraça de pobreza
quintas e
casarios fumavam lenhas e ceias
o sino da
igreja aportuguesava o Cristo local
e todos
os pais eram vivos e trabalhavam e eram fortes
e todas
as crianças ovelhavam pela erva das colinas
os velhos
usavam chapéu e olhos sábios
de mochos-oitocentistas
ilustrando bosques-falantes
longe o
mar subia à paleta vidraceira do céu
peixes e
estrelas dividiam a religião do infinito
o meu
corpo não era ainda espermático ou licoroso
o teu
também não que eu sei basta fazer as contas
acontecia-me
nascer de noite também
quanto
mais chovia mais eu renascia
de olhos
fechados na cama aberta pela Mãe ouvindo
o aplauso
infinito da chuva ao drama do mundo
o
infinito drama do mundo das crianças ouvintes
da chuva
desolada desoladora e tão gaiata
como uma
criança nua havia-as muito no meu tempo
descalças
no esterco dos animais-de-tiro da agricultura
infectadas
de moscas e de alcoolismos fundadores
algumas
rebentavam do coração numa aflição de pássaros
desasados
de golpe pelo gato da miséria patriótica
comecei a
desnascer mais e mais a partir delas
dei por
mim aos dezassete anos nos bailes do Clube
a música
eléctrica entrava no corpo tal formigueiro
líquido
era o perfil das raparigas de febras enjauladas
em gangas
causticadas de lixívia e primeiras
menstruações
aromáticas em fissuras de caramelo
começou
então no mundo a desinstitucionalização da eternidade
os homens
de chapéu tiravam o chapéu e deitavam-se nos caixões
chorados
com violência por filhas e cães muito magros
o sino
cantava poemas mais lentos dessa lentidão
que crava
as unhas fundo no coração
desapareciam
as infantis ovelhas das colinas
umas iam
para serventes da construção outras para oficinas
a minha
Mãe teimou que eu haveria de estudar
o Século
de Ouro da Poesia Espanhola por exemplo
a Porra
dos Verbos Franceses a Implantação da República
Capelo
& Ivens Gago & Sacadura Stanley & Livingstone
Dr. Jeckyll & Mr. Hyde Marie & Pierre Curie
Holmes & Watson
Bucha
& Estica Yourcenar & Mishima Nascer & Morrer
à noite
revisitava o meu quarto em velório de livros
no pátio
os cães rondavam como sentinelas envelhecidas
aos
poucos os anos tornaram-se muitos dei-me à corrente
autocarros
opúsculos crepúsculos botânicos tabernas frias
nunca
percebi fosse o que fosse da minha Cidade
na gare
rodoviária os bolos eram fritos a gasóleo
os
choupais eram devassados por ciganos e homomulheres
já então
a tinta-da-china das matas me matava
de
rendilhada beleza litográfica eu ansiava de lápis
na mão
nos olhos no corpo que se me erectava
de
concupiscente paixão pela pobreza de viver tanto
enquanto
já tão pouco renascia digamos assim
dei por
mim amando mortos coleccionando almas
expostas
em ouro ao sol de tardes assim agora depois
no monte
à flor do oceano entre fábricas autocarros
tolos e
crianças sorrindo sós.
III
Os olhos
cheios de água do mar
orlam do
olhar a condição litoral
um homem
maduro suporta mal
o sal que
enxuga o mesmo chorar.
Por
exemplo raparigas ou cães
tidos e
perdidas em baías ágoras
cruzando
o manso terror da dissolução
uma noite
de inverno uma manhã de verão.
Sem comentários:
Enviar um comentário