Tela
Cénica – ou
então – Tudo Ou Nódoa
Nota Preambular –
Porque sou doido por bom teatro (Arte-de-Talma para os eruditos e para os
decifradores de palavras-cruzadas), a ponto de de mim poder dizer-se que tenho
‘pancada’ de Molière, e porque gosto muito de listas
telefónicas pela razão de serem obras com muitas personagens e acção nenhuma,
surgiu-me a composição do seguinte aparato dramatúrgico:
À
esquerda-alta, o cavalheiro de azul remói o desgosto-mor da sua vida: a filha
única desgosta dele – já a mãe dela e a mãe dele lhe fizeram o mesmo. É de
joelhos pontudos e de coxas magras, calvas e muito brancas – vir de calções
para esta crónica teatral não foi grande ideia sua. Nem ajuizado adereço. Fuma
como se pensasse, baforando argolas perfeitas quais calamares de fumo.
Ao
centro-alto, duas mulheres-pavoas. Bustos como bandejas. A mais velha cheira a
cabeleireiro recente: fede a madeixas quentes, que lhe estriam o capacete de
unhadas postiças; a mais nova é uma rosa branca como aquelas que se amontoaram
em plenário miraculoso aquando do enterro da Alexandrina de Balasar (morte a
13, funeral a 15 de Outubro de 1955: “"Hoje
no Porto não há rosas brancas, foram todas para Balasar."), a santinha
daquela mui pia freguesia do concelho da Póvoa de Varzim. Só que a sobredita
não é santa nem virgem, é só rosa branca. E está viva, também. E é vivaça como
as rosas encarnadas.
À
direita-alta, a mesa está desocupada, assim permanecendo até final desta peça
quieta mas não isenta de seu drama (como no fim se verá). Por conseguinte, as
quatro cadeiras conversam umas com as outras, mormente acerca dos traseiros
volvidos que os tampos lhes enceraram do muito uso, tampos e tempos ora velhos
mas outrora bons, anos de muita freguesia, de muito tostãozinho amealhado
chávena a galão, carioca a cálice, prego-no-pão a
meio-bife-no-prato-com-ovo-a-cavalo, bola-de-berlim a pirâmide de
massa-de-chocolate, macinho de cigarros a (valha-nos Deus!)
cigarrilhas-de-café-creme, ’inda o isqueiro carecia de licença de porte &
uso, salazar-salazar-salazar. E cerveja preta à pressão como outra não havia
nem voltou a haver.
À
esquerda-baixa, uma criança-menina obtém da mãe o emolumento (“uma-vez-sem-exemplo”) de um ovo-kinder
com néctar de manga-laranja avec
palhinha de plástico. A mãe propriamente dita tem qualquer coisa de tremente
zebra: ou de égua gentia, brusca, nervosa, fremente – do ser divorciada há
pouco tempo, só pode.
Ao
centro-baixo, um senhor que foi padre mas que agora prèga benefícios,
protecções e condições excepcionais para uma companhia de seguros. Não
desleixou, todavia, nem a castidade genital nem o latinório daqueles
antigamentes de rendadas sobrepelizes & de mulheres ajoelhadas: vive só
numa garagem com quarto-de-banho (só com retrete e lavatório, lavando-se
estoicamente ele a balde & púcaro) que uma tia velha devota da Alexandrina
cedeu por caridade ao desavindo e materialista, quiçá marxista, apóstata.
À
direita-baixa, uma arara enjaulada apregoa a aguarela tropical de si mesma.
Bisneta de enjauladas, não compreende nem enseja qualquer veleidade aeronáutica
– é feliz com umas poucas sementes e bebedouro fresco como o povo português,
além de nicotinómana passiva, pois que se pode fumar (e fuma-se, como já vimos)
em palco.
O
fosso-da-orquestra não tem músicos nem música a sério, mas sim um “DiJêi” de bairro-social que faz uma
máquina bolçar kizombas & hip-hops intermináveis e iguais entre si como a
universalidade da merda, pseudomúsica intolerável até ao mais rude pavilhão
auditivo. (Cometemos o crime continuado do colonialismo bélico-cristiano-civilizador-ultramarino,
não cometemos? Cometemos. Então agora há que aguentar e penar, em remorso
mal-mordido, tal caca sonora.)
A
plateia apresenta um punhado octogonal de melros que cuspimastigam pipocas em
voz-alta e não puseram em silêncio os respectivos telemóveis. São deveras oito,
ao todo: um que escreve coisas idiotas na contracapa de um jornal em acelerado
e recrudescente descrédito (o jornal e ele); outro que é idiota também e mais
nada; outro que é coisa também; o quarto é professor há 29 anos e concorreu
para os Açores mas nem assim; o n.º 5 é o Chanel
mais famoso; o meia-dúzia quis, em pequenino, ser astronauta mas não chegou
a astronauta, ficou sempre pequenino e cá em baixo como os outros; o hepta é um
hepático tipo Bílis-the-Kid cuja amarelidão de rosto reverbera e refulge no
escuro como uma hóstia de pus, para além de croupier
de vinte-e-um, banca-francesa &
roletas vesgas numa manhosa tabanca
clandestina; e o derradeir’oitavo é um dos meus irmãos, aquele que não fala
comigo por causa de algo de que nem ele nem eu nos lembramos já o quê, o porquê
e o para-quê.
O
arrumador-lanterninha coxeia o reumatismo sem esperança de gorjeta. A da
bilheteira cobiça tão-só na vida a sopa requentada e o gato sarnento que em
casa a esperam ao cabo de representada a representação, desligada a ribalta e
aferrolhado o pórtico-hall. Só que não é, a dela, uma casa-casa – é, isso sim,
uma garagem anexa à do ex-padre-agora-mediador. E paga um balúrdio de renda
pelo cubículo (mas com bidé para o inevitável chape-chape das mulheres), ao contrário do sobrinho da
velha-alexandrinófila, que não paga nada mas há-de pagar nos infernos por haver
renegado a Deus.
Nisto,
mesmo à maneira daquelas coisecas para representar na TV (com a respectiva
mulher a protagonista, claro) que o senhor Moita Flores escreve, não cai o
pano – cai a nódoa.
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