08/07/2015

Muito Novo em Peniche, ao Vento (republicação revista e ligeirissimamente aumentada de original de 4/9/2007)

Muito Novo em Peniche, ao Vento


Caramulo, entardenoitecer de 4 de Setembro de 2007


Eu era muito novo e o vento também
vinha de lado como eu.

Ajudei a mudar móveis de casa para casa,
em Peniche, surpreendido pela
omnisciência ubíqua do mar
peninsular.

Eu era tão novo, que nem descobrira
que comer merda pode ser uma vocação.

Conheci no istmo ’ma mulher triste.
Chamava-se H.ª Lx., não sei s’inda existe,
não sei, não.

As minhas mãos no comboio que vai para o norte.

Isto é um verso escrito por ela.
Ela sobrevivia num quarto com livros
sem estantes.
Ela só tinha instantes – e livros –
e este verso maravilhoso.

Nunca mais a esqueci.
Não mais o vento a esqueceu.

Eu tinha um colega de Geografia
que depois se tornou mercador de gangas
de marca.

Eu tinha um colega de Matemática
que depois deixou de beber
e voltou para casa
no norte.

Eu tinha um colega de Pataias
que comprava heroa ao grama
e pronto.

Eu tinha um colega de Barcelos
que unhava o cavaquinho.

Eu tinha um colega palestiniano da Covilhã
que, pronto, era ele.

Eu tinha 22 anos.

Nunca percebi nada que não fosse a
Nau dos Corvos.

Nunca vi nada em Peniche que não fosse a
maravilhosa oferta a dez escudos
de tantos livros do
Vilhena.
(Comprei lá também um
Carlos Fuentes, O Velho Gringo,
no dia 28 de Abril de 1987.)

Eu era um anjo suspenso: meses de nada,
um pouco antes, tinha-se-me ido
o Jorge.

Eu era aprendiz de professor,
(mas nunca aprendi),
tinha 22 anos, não tinha
nada a dizer ao futuro.

Vale que havia o vento.
O vento de Peniche é o vento mais humano do mundo.

Também havia o senhor Alfredo
e havia o senhor Manuel
e havia o Cesaltino
do Nau,
um Café que era ao pé da muralha,
já não é.
Havia, à janela do Nau, o ex-embarcado
da Marinha Mercante que lia
livros espíritas, vestido de branco
contra a pele solária acima
do escaracolar dérmico dos pés
nas sandálias mariconças.
Tinha uma pancada muito jeitosa, esse senhor.
Acho que já morreu.

Fui à Praia da Consolação, mas
não encontrei Ruy Belo,
devo ter-me atrasado,
oito sete, sete oito.

Perto da muralha, uma cabine telefónica avariada
deixava telefonar de borla. Telefonei muito.

Um dia, de repente, choveu tanto,
que entre os Correios e a Caixa Geral de Depósitos
não se podia passar sem
carta de Cristo ambulatório
à tona d’água.
Telefonei todo contente do Banco para a Escola:

Olhem, vou chegar atrasado por causa distassimassim.

E atrasado cheguei.

Ainda hoje assim chego.

Vale que hoje,
mesmo longe,
está vento.

Estou é menos novo.
Isso e sem nada que dizer
ao futuro.

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Canzoada Assaltante