Muito Novo em Peniche, ao Vento
Caramulo,
entardenoitecer de 4 de Setembro de 2007
Eu era muito novo e o
vento também
vinha de lado como eu.
Ajudei a mudar móveis de
casa para casa,
em Peniche, surpreendido
pela
omnisciência ubíqua do mar
peninsular.
Eu era tão novo, que nem
descobrira
que comer merda pode ser
uma vocação.
Conheci no istmo ’ma
mulher triste.
Chamava-se H.ª Lx., não
sei s’inda existe,
não sei, não.
As minhas mãos no comboio que vai
para o norte.
Isto é um verso escrito
por ela.
Ela sobrevivia num quarto
com livros
sem estantes.
Ela só tinha instantes – e
livros –
e este verso maravilhoso.
Nunca mais a esqueci.
Não mais o vento a
esqueceu.
Eu tinha um colega de
Geografia
que depois se tornou
mercador de gangas
de marca.
Eu tinha um colega de
Matemática
que depois deixou de beber
e voltou para casa
no norte.
Eu tinha um colega de
Pataias
que comprava heroa ao
grama
e pronto.
Eu tinha um colega de
Barcelos
que unhava o cavaquinho.
Eu tinha um colega
palestiniano da Covilhã
que, pronto, era ele.
Eu tinha 22 anos.
Nunca percebi nada que não
fosse a
Nau dos Corvos.
Nunca vi nada em Peniche
que não fosse a
maravilhosa oferta a dez
escudos
de tantos livros do
Vilhena.
(Comprei lá também um
Carlos Fuentes, O Velho Gringo,
no dia 28 de Abril de
1987.)
Eu era um anjo suspenso:
meses de nada,
um pouco antes,
tinha-se-me ido
o Jorge.
Eu era aprendiz de
professor,
(mas nunca aprendi),
tinha 22 anos, não tinha
nada a dizer ao futuro.
Vale que havia o vento.
O vento de Peniche é o
vento mais humano do mundo.
Também havia o senhor
Alfredo
e havia o senhor Manuel
e havia o Cesaltino
do Nau,
um Café que era ao pé da
muralha,
já não é.
Havia, à janela do Nau, o
ex-embarcado
da Marinha Mercante que
lia
livros espíritas, vestido
de branco
contra a pele solária
acima
do escaracolar dérmico dos
pés
nas sandálias mariconças.
Tinha uma pancada muito
jeitosa, esse senhor.
Acho que já morreu.
Fui à Praia da Consolação,
mas
não encontrei Ruy Belo,
devo ter-me atrasado,
oito sete, sete oito.
Perto da muralha, uma
cabine telefónica avariada
deixava telefonar de
borla. Telefonei muito.
Um dia, de repente, choveu
tanto,
que entre os Correios e a
Caixa Geral de Depósitos
não se podia passar sem
carta de Cristo
ambulatório
à tona d’água.
Telefonei todo contente do
Banco para a Escola:
– Olhem, vou chegar atrasado por causa distassimassim.
E atrasado cheguei.
Ainda hoje assim chego.
Vale que hoje,
mesmo longe,
está vento.
Estou é menos novo.
Isso e sem nada que dizer
ao futuro.
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