Rua 1.º de Maio, Pedrulha, Coimbra. Foto de Luís Borges
Uma
vez só
Na Rua onde a consciência da minha vida se
deu em pertença ao mundo, existiam o senhor Elói e a senhora Celeste.
Ele era sapateiro em casa.
Ela dava injecções por fora.
O vinho dele era manso. Nunca fazia as cenas
tristes dos bebedores sem conserto.
Ela era ladina e legítima. Parecia uma rosa
frágil, mas era forte e rosa na mesma.
Geraram entre si vários rapazes: correctos
todos, educados todos, todos e cada um homens já desde meninos.
A senhora Celeste foi dos dois a primeira a
morrer.
(Na morte, é-se sempre o primeiro, alguém
disse. No nascer, sempre o último, antetizo eu.)
Talvez por achar que o mundo e os sapatos
que há no mundo deixaram, como o vinho de tantos outros homens, de ter
conserto, foi em desconcerto que o novo viúvo se achou.
Deixou apodrecer a barraquita onde tantos
anos remendara, cosera e assolara os calcantes pobres dos pobres seus vizinhos.
Passou a beber (de) mais. O vinho da viuvez amargava-lhe a opinião.
No exílio do desamparo, sem filhos em casa,
mal comia um bago de arroz. Julgo que o senhor Elói vivia de ovos cozidos e de
figos esmagados em farinha para bebés. Gostava de nozes, mas também os dentes o
tinham desertado. Como o vinho não tem ossos e não há por isso que roê-los,
sustentava-se de uva-mijona ao preço-da-chuva em copo-de-três.
Nunca mais lhe bateram à porta – nem para
colar um tacão, nem para pedir à mulher uma inoculação de soro milagreiro
contra a humidade dos ossos, a secura do coração ou o ramerrão de tanto ontem à
janela do amanhã.
Ele habituou-se ao lusco-fusco do vinagre
de continuar vivo.
O rosto dele adquiriu aquela esponjura roxoviolácea
cuja purpurina não engana ninguém.
Ele era porém, como até ao fim haveria de
ser e foi, igual ao que fumava: um português suave definitivamente provisório
riscado pela pederneira do silêncio no escuro da caixa-de-fósforos do quarto
antigamente conjugal.
Gracejavam com ele a propósito das
vacas-magras que o seu Sporting há demasiadas épocas apascentava. Ele sorria,
contente de o terem presente. Mas de verdade não tinham – era só um viúvo só,
um remendão que bebia e já nem remendava nem se emendava, um que lavava e cosia
as próprias meias. Se ele fosse de destempero vindicativo, vingar-se-ia com o
uso e no porte dos sapatos mais bem recauchutados da Rua e arredores. A graxa
que ele caminhava, impecável e lustralmente acamada no couro velho das botinas
antigas, era de outra coruscância.
As grandes e vitalícias chuvas de Março
reiteravam o novembro-perpétuo da casa do sapateiro, nela percutindo a vidro a
melopeia do não-mora-aí-ninguém-aí-não-mora-ninguém.
Era uma casita de fileira operária, ao alto
do charco que dragaram para construção da mercearia do Licínio.
O sol claro do claro Junho, a lua próspera
do sardinheiro Agosto e a nostalgia sideral da irredenção de Janeiro eram os
recipientes naturais deste homem confirmado e conformado em solidão, daquela
solidão mais sozinha que range móveis até nas saletas vazias.
Nunca o vi com um livro – talvez porque o
instinto o fizesse saber que faria parte de um, este.
Sei que nunca permitiu que se oxidasse o
estojo metálico em que a senhora Celeste descansava a seringa esterilizada. O
que nele se oxidou foi outra coisa: talvez a consciência, talvez a vida, talvez
a pertença, talvez o mundo.
Ou tudo junto nas apenas três letras de
Rua.
Essa mesma a que tornarei também um dia.
E não há-de ser para viver, porque nem este
verbo se difere nem se repete – e porque em e de alguma coisa hei-de,
finalmente, ser o primeiro.
1 comentário:
Da ternura que reside nas lembranças.
Beijinhos Marianos, Baniel!
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