30/09/2013
29/09/2013
Rosário Breve n.º 326 - in O RIBATEJO de 26 de Setembro de 2013 - www.oribatejo.pt
Crónica para ler ao altifalante
1. São estes os últimos dias da
campanha para as Autárquicas/2013. Por todo o País, viaturas entestadas de
altifalantes rastreiam por becos, vielas, travessas, ruas, avenidas e praças o
ladrar roufenho da propaganda. É som que me melancoliza: lembra-me sempre, por
irrecusável e irredimível homofonia, a presença antecipada dos circos. E pior:
traz-me dos antigamentes a camioneta dos sorteios dos cegos por cercanias do
Natal. Ou, das feiras, o casal de microfone enrolado em peúga a vender colchões
milagrosos a velhinhos de arruinadas ortopedias e enxovais mijados a noivas já
prenhes.
Tenho já idade a suficiente, todavia, para que a minha
propensão merencória se não alcandore a critério de aferição. Este vozear a
pilhas altífonas & megafónicas do vota-neste-vota-naquele é, afinal, quanta
música a democracia local sabe cantar. Mas antes essa cantiga, afinal e
deveras, do que o silêncio sepulcral das nomeações a dedo do tempo do Morcego
Eunuco, vulgo Salazar.
Que eu não tenha expectativas, é moléstia pessoal só. É só
enfado incréu meu. Agora que o País as não tenha, aí já fia mais grosso. Casos
há e autarquias há em que um mínimo de bondade prática é exercido nos ínfimos
meandros da quotidianidade. São excepções, todos o sabemos – mas a regra é ir a
votos sempre, posto que muita e muito boa gente sofreu em combate as sevícias
da ditadura para que os vindouros (que nós somos) pudessem errar à livre
vontade sua no boletim democrático.
Eu sei, eu sei: “eles” não vão para lá para nos servirem
mas para se servirem. Nem todos, porém. Conheço casos de gente eleita cujas
clara honestidade e competência irredimível são irrecusáveis. Trata-se, no
fundo, de sabermos, como eleitores, identificar os gatos e os ratos, votando no
cão. No lobo, não.
2. Até lá (dia 29 do corrente), não
nos doa a cabeça nem nos apodreça o dente. Ao morredouro quotidiano do tostão, saibamos
opor o lingote do bom sol português, que o Outono já oficial ainda não soube,
ou não quis, desveranizar. Foi o que fiz no sábado, 21. A minha mais nova quis
ir ver a primita, neta da minha irmã. Través a fornalha reverberante da tarde,
soubemos merecer, na casa que foi de nosso Pai quando infante, a frescura das
grossas paredes de uma alvenaria mais antiga do que a morte dele. Houve refresco
de café lambido a limão em gelo. A minha sobrinhita-neta, que se chama
Margarida, não estava – mas a minha Teresa não esmoreceu por causa disso. A
minha irmã (que é Lucília, cuja etimologia é luz por a razão óbvia do que ela é
em pessoa) foi buscar os álbuns das fotografias familiares. E então a Teresa
folheou o Pai dela quando mais novo do que ela – e quando os cães altifalantes
das eleições, que então nem havia, não altiladravam por becos, vielas,
travessas, ruas, avenidas e praças a local e nacional e patriótica democracia.
16/09/2013
DOIS DIVERTIMENTOS (linguagem e assuntos um bocadinho pesadotes)
DIVERTIMENTO (1)
Leiria, 13 de Setembro de 2013, sexta-feira
Como
altos frutos de seiva alta crescem
e
passam pela galeria as mulheres alheias.
Todas,
sem excepção quase, me merecem
as
felicitações mais altaneiras.
Olhai-me
esta morena: parece um lírio bronzeado.
É
desconfiadita: mamalhuda, olha de lado
o
poeta inocentíssimo que a soletra, o vil.
Em
cada pernaça rija tem quilómetros mais de mil.
Fincai-me
esta loura à força como é de moda:
já
aquele coirão (perdão!) mereceu muita foda,
que
no derramar do leite está o choro ganho.
Fica-lhe
bem a popelina fresca na pele saída do banho.
Estas
duas, siamesas, amorangam framboesas.
As
bocas são de uma carnação acerejada
que
apetece lamber com chantilly – ou então com nada.
Que
passinhos voadores! Que sandalinhas princesas!
Passa
por fim a feia forte não desprovida de encanto.
Farfalhuda
de barrigola, é de marido que gosta de bola.
Mas
um não-sei-quê se evola dela,
uma
trepidação que conspira sob a blusa amarela.
Já
quase arrumo o caderno, já vou quase em casa.
Portei-me
hoje bem, não ensaquei o grão-na-asa.
E
quando a minha me perguntar pelo dia,
minto-lhe,
feito cegueta, que só a ela vi quando escrevia.
DIVERTIMENTO (2)
Leiria, 15 de Setembro de 2013, domingo
Esvurmo,
mui voraz, à palitada
de
dente cavernoso uma bocada
de
carne que ali me apodrecia.
Sarro
e catarro arranco a puxões,
que
escarro depois sobre um relvado.
Que
feio e ruidoso, puxar o escarro
e
deixar o verde pano ov’estrelado!
A
minha santa Mãe, se isto me via,
ralhava,
pomba furiosa, pois não podia
que
o Menino fosse qual vil carroceiro,
p’ra
mais com universidade e do nome Abrunheiro.
Mas
nem sempre se é mota. Às, vezes só se é lambreta.
Sou
feliz assim, porcalhão, descuidoso.
Chego
a cuspinhar pelo mero gozo
de
imitar a fonte, a carranca, a sarjeta!
Ora
pois qu’inda bem. Hoje, não lavei ’inda os dentes.
E
pois então? Cariados, rachados, são sorridentes
à
mesma, quando disso é ocasião.
Esta,
uma dessas. Mas pelo que te escrevo não meças
(ou,
muito menos, me peças)
que
mude agora de condição.
Algumas
lostras chegam a ser formosas,
com
seu quê de ostras, de ovo, de rosas.
Daí
o parecer-me algo pacóvia
a
repugnância indistinta ante toda a escarróbia.
As
que prefiro são as de recheio como as empadas
–
folhosas, cristaladiças, suculentas e folhadas.
E
não direi muito pelo errar, não,
que,
afinal, todo o cuspir-pró-ar
acaba
caindo no chão
como
é da mais humana condição.
15/09/2013
Rosário Breve n.º 324 - in O RIBATEJO de 12 de Setembro de 2013 - www.oribatejo.pt
Utopia lamentosa
A minha utopia é a de um País cujos bombeiros só fossem
precisos para tirar da árvore o gato que a ela subiu para desespero da viúva que
tanto o mima.
Agosto ardeu já de ponta a ponta. Queimou combatentes que
precisavam só de ter juízo, de ficar em casa com a família, de deixar arder os
outros e o que é dos outros. Morreram uns tantos? Não faz, parece, mal: vamos
continuar a ter futebol distrital.
A minha isotopia é a de um Portugal que quisesse chamar-se
Mar-Pinhal. Uma longa horta de litorais 860 quilómetros. Um que plantasse
sardinhas e pescasse tomate. Um que não permitisse à hidra do capitalismo a
transformação de searas em campos de golfe. Um que, em vez de amestrar,
educasse quem nasce. E que cuidasse de quem, por culpa inocente dos muitos
anos, des-nasce sem amparo nem remédio.
Agosto é o nosso carnaval em chamas. Até aqui, era só um
mês parolo, uma jornada bailada em calão, uma temporada pimba, papalva, quase
inocente. Já não é só isso. Agora é também uma época mortífera. Parece uma
telenovela fatal, a que acresce a “fatalidade” intolerável do calendário.
A minha utopia portuguesa é a de erradicar de uma vez para
sempre o mês de Agosto. Baniríamos para sempre a crise, passando directamente
de Julho a Setembro. Pensando em profundidade, aliás, nem de Julho
precisaríamos. Ficávamos só com Junho, cujo Inventário
foi escrito por Teixeira Gomes, elegante e nosso esquecido Presidente da
República. Maio? Longe com ele: nasci num. Abril? Memória nenhuma e respeito
nenhum, meu capitão Salgueiro Maia. Março? Nem com bagaço. Fevereiro? Adeus,
atoleiro. Janeiro? Acabado, como o
professor que antologiava as lendas da Primária no tempo em que se lia nas
escolas. E nenhum Natal e nenhum Novembro por causa de tão infiel e tão defunto
e nenhum Outubro.
A minha utopia é a dos oito bombeiros, entre rapazes,
homens e raparigas, voltarem para casa a tempo de um País que nem de meses
precisasse para estar a tempo de si mesmo.
No entretanto, também a democracia para que fui educado
arde. Chega a ser desopilante, a anti-PIDE do tudo-à-mostra: a carcaça da
corrupção, o Cavaco nas Selvagens a fazer de Vasco da Gama, os fatos
Armani-Sócrates dos comentadores tipo Judite/Seara, a exuberante inteligência
do CR7 pelo menos naquilo da Irina. Mas os bombeiros, os bombeiros…
Prefiro o gato da viúva, gozão, em cima do choupo. Sei do
que falo: sou marido de bombeira, pelo que tive um mau mês. Muito mau. Mas para
o ano há mais, bem no sei.
11/09/2013
Rosário Breve n.º 323 - in O RIBATEJO de 5 de Setembro de 2013 - www.oribatejo.pt
Os Trapos
Envelhecemos,
deveras e de vez, quando deixamos de praticar a eternidade. (A de cada dia,
digo, que não a outra, a de mentira das seitas autistas-evangélicas, essas
matilhas engravatadas que andam de Deus na boca como cães que não desmordem o osso.)
A eternidade é
aquilo que as crianças são de cor – e às cores. Certa idade madura existe que,
não desprovida de lucidez, logra até assomos de felicidade, consistindo esta
num ardil simples. É o ardil do alzheimer voluntário: esquecer a morte, deixando-a
dissipar-se como pretérito hélio de balão passado, inútil (e nociva até) para o
dia-a-dia.
Mas os velhos
existem – e nem todos o são pela idade. Todos os dias os vejo por esta galeria
que erigi em observatório mundial. Andam devagar, rasteirados pela exasperante
areia que (n)os não deixa fugir, essa areia de quando, nos sonhos, o pânico nos
congela o sangue. Parecem-me pombas golpeadas pelo falcão da irreversibilidade.
São de uma castidade involuntária. O mais alto acontecimento deles é respirar
ainda, ao alto de uma digestão de lâminas dispépticas. Casas que ameaçam
derrocada, não têm a quem abrir a janela do que viveram. Têm pena, e raiva até,
de que deles saibamos tão-só a história de irem morrer como se para nada mais
houvessem nascido e sido. Semelham, um a um, lojas de centro comercial que, uma
a uma, se liquidam as existências antes de, de vez e deveras, fecharem a porta
e dar a chave ao gato.
Volvem-se aquíferos
tártaros pelos mesmos poros por onde outrora jorraram salubridades chamadas filhos. Hibernam em pleno Verão, imunes
à estupidez malévola dos netos, que entretanto ascenderam ao púlpito das
freguesias, dos municípios, das secretarias de Estado e dos sobreiros trocados
por submarinos em vez de, ao menos, helicópteros para o bombeiral.
Os velhos são a
ominosa e luminosa evidência, por obscuro contraste, de que tudo arde. Não só,
como hoje, à inclemência de Setembro, a tarde – mas a própria vida, a vida
mesmo. Alienados, por deles e para eles feliz nesciência, das tropelias malsãs
do quotidiano, vegetam iodadamente numa espécie de algodão já surdo às
premências mais básicas: comer um morango entre risadas de champanhe, soletrar
sílaba a sílaba a carnação suculenta & suco & lenta de um ser que se
nos dispa, reler Cesário Verde sem segundo resgate da Troika – e não necessitar
ainda da perícia benevolente do doutor Vítor Martins do Hospital de Santarém,
que, por assim dizer, miniaturiza no coração a vontade pacemaker de viver, nem que seja só mais um bocadito.
(Explicação, em prol
e/ou prece da cumplicidade do meu leitor: dá-me sempre para isto, cada vez que
Setembro volta a fingir que é o mesmo Setembro de antigamente. “Para isto”: isto é: para,
verso/velho/a/velho/verso, reiterar a necessidade outonal do húmus, que é a
latência polar do Inverno, que sagra à Vivaldi e à Stravinsky a Primavera que
tudo, como tudo e como vereis, Verão será.)
Foi que, como esta
manhã, mal ainda se anilando a alva no alvor entrecortado do morse dos estores
e raspando-me eu a barba, o pequeno milagre da repetição quis ser mais novo do
que trapo: ao espelho, a barba era minha que se ia, mas vinha dos olhos o olhar
que foi, e há-de ser, o do meu Pai, esse trapo.
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