Ó LEANDRO!
Esta semana, não sei porquê, voltei a
pensar no velho Leandro. Deixem que vos conte. O Leandro era um velho muito
velho. Tão velho, que já era velho na minha infância. Era jardineiro, dizem que
bom. E bebia como uma nuvem. Tinto, cheio, muito. Ia de autocarro para a
cidade. Nunca pagava bilhete. Nem lho pediam. Era uma figura pública: a
primeira figura pública que conheci. Para prazer de todo o mundo, insultava
todo o mundo com os palavrões mais grossos do nosso idioma. Mas só o fazia
quando provocado. Quando não, respirava o silêncio de uma solidão sem tréguas.
Pelo fim da tarde, passava pela minha rua a
caminho de casa. Nós, miúdos, escondíamo-nos atrás de um carro ou de uma
oliveira e gritávamos-lhe: “Ó Leandro!”. Só isto, mas era quanto bastava. O
velho alinhava logo na festa. Punha-se a vociferar torrentes e torrentes de
obscenidades a propósito de coisas tão existenciais como, por exemplo e
sobretudo, o modo como tínhamos sido gerados e por quem. Claro que, na boca
dele, as nossas mães nunca coincidiam com os nossos pais. Era fascinante.
Morreu muito velho na casa do Vale do
Forno, entre flores e laranjeiras e cheirando a mijo e a santidade.
Mas ainda o vejo, mais eterno que vivo, ao
pé da casa da Cuca. Eu vinha sozinho e despreocupado. Quando dei de caras com
ele, o sangue evaporou-se-me do corpo. Ele trazia, como sempre, a tesoura de
podar. Nessa altura, eu era de tão pouca idade, que ainda tinha medo. E tive.
Nessa ocasião fulminante, tive muito medo. Era ele e eu, sozinhos no mundo. Debaixo
do sol ardente que me ilumina sem clemência nem crepúsculo a infância perdida
para sempre, só ele e eu éramos, estávamos, existíamos. Mais ninguém. Hora
terrível, avassaladora, hora de agonia.
Em puro desespero, com o coração feito num
nó de água chilra e as tripas reduzidas à condição de serpentes murchas, pensei
num estratagema para evitar que a tesoura dele confundisse o meu pescoço com um
ramo de sebe. O estratagema era este: passar por ele e dizer “Boa tarde, senhor
António!”. Porque ele era António, não era Leandro. Respirei o mais fundo que
podia e tentei. Mas, ao passar por ele, o medo traiu-me. Gaguejei isto: “Boa
tarde, senhor Leandro!”... O velho, furioso como um deus pobre, levantou a
terrível tesoura de podar e apontou-a à minha cabeça de franganito. Desatei a
correr como um TGV de calções. Só parei nesta página. Ao longe, ainda ouço o
velho a ralhar coisas sobre a minha Mãe, coisas em que vos peço não acreditem.
Acreditem nisto, apenas nisto: aquele era
um bom homem que cuidava de flores. E por tão bem ter cuidado de flores, merece
bem, penso eu, a rosa de uma crónica em memória de si, senhor António.
1 comentário:
Muito bom.
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