© Pawel Kuczynski
Dio com cio
A minha gata está com o cio. Acho que foi esta a forma que o relógio biológico dela encontrou para se associar à multitudinária crise socioeconómica dos nossos dias.
Têm sido horas tremendas: tanto para ela, que se chama Dio (diminutivo familiar para Dionísia), como para os milhões de anónimos que por todo o lado tão (o)ciosa e justificadamente manifestam a sua indignação.
Para mim também, acrescento: todo o dia e quase toda a noite ela geme agudamente pela casa, esfregando-se no chão como uma alternadeira felpuda e bigodosa. Quando a ansiosa natureza deste fenómeno lhe permite uns momentos de repouso, ela dorme enroscada na sua virgindade de gatita de terceiro-andar urbano, permitindo-me a mim assistir ao noticiário. Fraca ilusão: cada noticiário a repete, à Dio com cio, multiplicada por milhares e milhares de pessoas gemendo agudamente por praças e ruas de cidades que vão de Faro a Berlim e de Santarém a Nova Iorque.
A começar por ela, todos esperamos que estes dias acabem. Eu não tenho dinheiro para lhe alugar um gato de cobrição, nem, tendo-o, disporia de meios para lhe sustentar a inevitável ninhada resultante desse tão cioso e ansioso amor. No outro plano, sou apenas um corpo na multidão e um grito apenas sob o mesmo cartaz que inscreve a revolta de toda a gente sem presente nem futuro por causa e culpa da selvajaria criminosa do hipercapitalismo internacional e das roubalheiras “legitimadas” do morredouro doméstico em que a lusa parvónia se tornou.
Aquilo da Dio, enfim, terá solução. É dar tempo ao tempo e ócio ao cio. Quanto ao resto, não sei. Obliteradas e trocadas por cifras, as pessoas e as populações são meros gatafunhos estatísticos: coisas sem alma equivalentes a unidades de crédito e a ferretes de débito com que os éfèmis brincam aos patinhos nas azulíneas piscinas em forma de rim das suas pornograficamente sumptuosas vivendas.
Mas, ainda assim, sou capaz de, na próxima manifestação de indignados em frente ao circo parlamentar, levar comigo a Dio. Tenho a certeza de que, sem procurar muito, ela encontraria um gato-pingado da política que a sustentasse com os nossos subsídios de natal e de férias.
2 comentários:
sTrata da Dionísia. Gosto do teu texto. Abraço.
Trata da Dionísia. Gosto do texto.
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