40. CÃO SEM E COM CASA
Leiria, domingo, 29 de Maio de 2011
Sou agora o filho de dois mortos.
No limiar da noite de domingo, sento-me sozinho num café e espero em escrita. Nada peço, tudo passa. A caminho daqui, vi duas palavras no chão. Caído de uma montra, um papel disse-me:
ÚLTIMOS DIAS
Percebi a mensagem, claro que sim. Depois, no veludo crepuscular, vi num relvado um casal de melros muito vivos. Penso tê-los compreendido também. Juntei passos de areia na Cidade, não parei. Recolhi o episódio arterial de pensar enquanto respiro. Passei por uma escola de línguas, voltei a desejar aprender alemão. Depois, sentei-me neste café. Sentei-me neste canto do café e pus-me a interrogar a razão funda de, na mesma Língua, beleza e tristeza rimarem tão bela e tristemente e tão triste e belamente. Um homem recorda a outro um rapaz da Nazaré que morreu em Moçambique num naufrágio durante a guerra. Somos actores de uma peça reescrita a cada momento. Tocamos os limites da fala. Os da incomunicação, também. À tarde, estive num bosque. As aves livres trilhavam músicas altas. Senti o perfume, recolhi dois panos de eucalipto, ouvi o trabalho vertical da seiva nas árvores tão vivas quão os melros do anoitecer.
Sim, sou agora o filho de dois mortos.
Estou vivo na sequência de um amor que vivificou décadas, muitas. Uma espécie de glória reborda a ouro o meu coração. Sinto a portugalidade desta batalha diária contra o esquecimento e em prol do amor. Não esquecer é um ofício duro. Também é repor interminavelmente um filme num cinema vazio de vivos. Sentado no café, terminando-se o domingo. Encerraram portas já os restaurantes. Os pequenos impérios particulares vigoram sobre os humildes regimes: salas-de-estar e televisores estúpidos, roupeiros e máquinas-de-lavar-roupa. Órfãos, sobrevivos – somos parelhos. Rulotes de bifanas na noite, corpos de pé integrando mostarda, cerveja. A aragem arfando, frescura quase fria. Contentores do lixo, polícias retardando imediações rodoviárias, estátuas apascentando a eternidade improvável, urbana. O Val Kilmer num final do canal Hollywood. A Nicole Kidman também, essa gardénia australiana. A nossa Língua acrobatando perícias e lírios e delírios. Barcos que derivam a noite dos peixes. A morte tóxica de Sir John Franklin e de toda a tripulação que ele comandou em demanda da Passagem Noroeste. A Beleza. A Pureza. Ser um filho de dois mortos.
Sou, sou um filho de dois mortos.
Ambos estrumam mármore, duas datas vezes duas, flores, serviços imemoriais, tendas de feira popular, apertos de coração, arroz-de-ervilhas, algumas frases que recusam caducar tanto silêncio, tanta noite sem eles. Junto a um lume franco, o meu corpo em ignição verbal. Os dentes das pessoas, as roupagens com que enfrentam a intempérie, as décadas. Ambos não podem já amar, podem só (sós) ser amados. É domingo ainda, a noite estende seus rios arteriais, sou um episódio. As crianças e as galinhas foram já recolhidas. Lá muito em cima, as estrelas engendram zodíacos eternamente provisórios e falíveis e faláveis. Cá muito fundo, certo arroz-de-ervilhas, certos crepúsculos na Figueira da Foz com ela, certas frases melhoradas por ele.
Sou pai de duas vivas.
Elas juvenilizam as áleas por onde, em flor, perpassam. Vejo-as sempre que posso. E quanto posso lhes peço. Leio-as assim:
PRIMEIROS DIAS
*
Um homem tatuado sem perna direita. Um dos quatro homens no café. Cada um em sua mesa. Ele fala para o homem que tenho mais perto, atrás. Chama porcas a duas mulheres que, no passeio, o não ouvem. Queixa-se de o terem roubado, ele não sabe quem, não sei eu também se suspeita delas. O telemóvel, dez euros. Bebe tinto. Dois homens mais, entretanto. Um ao balcão, outro a uma mesa sem companhia. Domingo quase acabado. O dos meus bastidores despede-se, sai, é absorvido pela noite. O sem-perna monologa. Continua a queixar-se do roubo. Tem um saco pequeno e preto. É de testa franca, bons maxilares, barba regular, orelhas diagonais. Só tem um pé. As duas mãos não são más: possuem uma latência (uma força). Nunca o vi partilhar com alguém uma mesa. A televisão distrai-o, finalmente. Silencia-se-lhe a boca, não os olhos. Camisola de cavas cor-de-laranja estampada de florações psicadélicas. Calções toldo-de-praia: vermelho-brancos. Fuma Ritz. Sobrancelhas finas de corista-Parque-Mayer. Lentidão de pálpebras. Monossílabos górjeos. Um lobo sem pata na estepe da noite. Uma armadilha cardíaca, dentada. Claro que sim. Distraio-me por instantes dele. Um homem de cabelo lacado, atirado da orelha direita à esquerda com tinta preta, trabalho e vaidade. Velho. Pescoço de galinha, fato cor-de-verde-ranho, sapatos-de-vela baratos, meias cor-de-leite-creme-desmaiado. (O perneta vai-se embora. Estou quase mais sozinho do que toda a minha vida.) Seis seres ingressam na torrente quieta do finidomingo. Desinteressantes, todos: dois pares de mamas-mortalhas e quatro rapazolas-haxixe. Bonés hip-hop, cós de calças em descaio-mostra-o-rêgo. Cigarros, refrigerantes. 23h27m. Preparo os meus apetrechos, os despojos a que pertenço. Vou para casa.
Um homem sem casa é um cão. Com casa, também.
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