Natureza-viva
Ela aproxima dele a boca dela, que é de uma frescura húmida de bivalve. Beija-lhe, lentíssima, a vista direita, depois a outra, depois, mui célere, a testa, as rosas do rosto, o queixo, a garganta e o peito, em que lateja o cachorro grato do coração. Um ricto de volúpia freme os lábios dele, o beijado.
Isto passa-se manhã muito cedo, na paragem que espera o primeiro autocarro do dia. A recatada distância, sou todo de uma atenção munida de discreta dioptria periférica. Estamos ali os três, mas eles são dois só que só são um (do outro). À beira do meu primeiro meio século de idade, conformo-me com a naturalidade de tanta tão amorosa mocidade, alheia embora ao meu corpo redactor, me encantar tão sem apelo e com tanto agravo.
O corpo dela é da mesma substância do olhar com que ela olha: espécie de água colorida daquele castanho refractário próprio dos pardais e dos outonos que douram tanto a espera quanto a demanda. Ela emana um perfume hipnótico, que vos tento fazer sentir chamando-lhe éter lácteo.
O corpo dele é presidido por um rosto inimputável, de que são adjuntas a boca sem jurisprudência e as mãos pesquisadoras do ouro branco do colo dela, onde a alvura apertou o lenço da neve.
Estão eles naquela mútua adoração – e o autocarro que, felizmente, não chega. Sinto-me bem: do outro lado da rua, uma vivenda cercada de rosas viço-variega explosões quietas em fragrância; um cão deitado pensa no castelo da colina, onde outrora cadelas-infantas exerceram os alvarás do mais régio cio; e eu sinto-me bem, perto destes dois que se amam sem horário a favor da mútua (a)do(r)ação.
O autocarro chega, eles embarcam, eu não, decido ir a pé, chego tarde aonde me esperavam.
– Então, perdeste o autocarro ou quê? – atira-me o Chefe.
– Quê – respondo eu. E esclareço:
– Estive na paragem do autocarro a ver a jovem mãe com o filho ao colo.
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