28/01/2011

Rosário Breve nº 191 - www.oribatejo.pt - 28 de Janeiro de 2011




Parêntese


É falso que existam ainda, na nossa democracia-arrastadeira, Esquerda e Direita. Porquê? Porque o pessoal anda (quase todo) com uma mão à frente e outra atrás. Ó larilas se não anda.
Pátria-espreguiçadeira, amoral e desmiolada, conluiada com sacanas gitanos e beócios monhés, a lusa terra chega a confranger: manhosa, mesquinha, avara e ignara, parece uma vaca de tetas murchas a cujo lombo se encavalita uma sórdida corja de cevados mamadores de comendas, prebendas e demais prendas. Sem desígnio, desprovida de instrução, preguiçosa, soez, deslavada, vil e cadaverosa, a portugalidade desmerece mais e mais, cada dia que se esvai ao vórtice do Tempo e da História, o 25 de Abril que, ingenuamente, a quis reabilitar. País de doutorzecos & sucateiros, de padrecas sem doutrina & exércitos sem salvação, de sargentolas obesos & poetinhas esquálidos, Portugaleco de fadistas-couve-flor & amendoeiras–d’arrebenta-pontes: verdade, verdade, verdade, verdade.
(E no entanto, quando ninguém ciranda pela periferia do olhar, o céu português é por vezes de um azul coruscante como um azulejo lavado a beijos. As laranjeiras patrícias chegam, de formosas, a doer na nacionalidade. As searas estouram de ouro. Os canaviais inclinam o vento pensativo. O torrão-de-Alicante e o carapau-de-escabeche, a água-pé e a da fonte, o adro da igreja deflagrando de cal, a pólvora fogueteira dos Agostos da infância, as mães cuidando dos ninhos pobres, a senhora-dos-gatos sempre de cesto, o retrato do Pai convocando o amor filial a preto-e-branco: tudo isto é devida, acertada e justamente português, ainda. As mulheres lusitanas são senhoras cuja volumetria vale perfume. E as crianças são milagres individuais cuja epifania é cânfora, âmbar, mirra, incenso e estearina ígnea em noite invernosa.
E se tal vos afianço com o coração nas mãos, é porque, sem que o notásseis, furtivamente tirei de trás a esquerda e da frente a direita.)


27/01/2011

Ideário de Coimbra - 151 (conclusão)

Quando fui tropa, comprei numa mercearia militar um frasco plástico de pó-de-talco para o calçar das botas. Já então me tinha casado contra uma rapariga de pele muito branca. A guerra andava longe, era quase engraçado ser um homem verde fabricante à força de uma moral patriótica à base de pólvora seca. A diferença era que, então, eu tinha só 23 anos. Isso é muita diferença, considerado e cotejado o (des)arranjo actual do corpo. A geração do iPod trata-me por senhor aos balcões-dancings por onde entretenho a necessidade de chegar vivo à manhã que vier. Penso que a desautorização dos professores corresponde à cadeia plástico-alimentar. Mas agora não é disso que quero tergiversar. É dos 23 anos. Ou dos treze, digamos: muros de cal gizavam a aldeia essencial do corpo-em-moço. Atirava eu então o olhar como uma pedrada castanha. E a visão zunia como um arame de alta-tensão. Sim: alta-atenção, esta que guardo no relicário do meu coração sempre que me acontece um telefonema feliz, ou uma alegria palavrosa, ou um verso – ou afim mariquice. De modo que, Alice etc.

*

Sebastião da Gama, José Régio, Cristovam Pavia e Jorge de Sena podem ser considerados conjuntasseparadamente como laranjas única da mesma laranjeira. O problema é hoje o ensino ser uma amarga brincadeira.

*

No dia dos teus anos, permite-me por favor,
António Arcanjo Dias,
que o teu nome inscreva, por teu valor,
em meus versos e poesias.

Tu e eu irmãos perdemos.
Na morte e na memória, agora são
João irmão de Jorge e Jorge de João.

Esta é a prenda que te quero e posso dar:
também, Toninho, sou teu irmão:
faz favor de o aceitar.

26/01/2011

Ideário de Coimbra - 151 (fragmento 5)






Uma construção mais sólida do que parece.

*

Tomo ainda as mãos dele, sopeso-as de lírios brancos e brandas unhas, essas doces garras de gavião inofensivo: mãos de quando o meu Pai era vivo.

*

Outra coisa é não morrer.
Caravelas gráficas sulcam as retinas do Adormecido.
São ou não são numismáticas as laranjeiras,
filatélicos os plátanos outonais
e humaníssimos todos e quaisquer animais?
Não outra coisa é morrer – nem viver.

Ideário de Coimbra - 151 (fragmento 4)

O vento da Noite e outras mariquices
concorrem concordes ao que sinto e penso.
Nada disto é mirra ou âmbar de incenso.
Isto são só versos, ligeiras tolices

com que brando o ramo de rosas verbais.
O mais que acontece, são telejornais.

Ideário de Coimbra - 151 (fragmento 3)





Ao flanco do Hotel Astória chega o hálito do Rio, gerações de pobre gente costuram as ruas a ponto-cruz, a Noite tudo faz para ser luz, mas não é fácil viver tão atento ao nada das coisas simples, digo: a pensão que recolhe os caixeiros-viajantes de retrosaria ou caramelos, os bate-chapas amodorrados por uma sexualidade de aluguer quase filosofia, as dactilógrafas de malinha de napa a condizer com o lacre dos sapatos de napa também, o bafo de geada que sobe do Rio para instituir laranjas e pensões.
Quando disto de te falo, isto te digo: a movimentação migratória torna apátrida o coração.
É naturalíssimo que as pessoas se tornem albatrozes.
Ao cabo de uns anos sem voar, é naturalíssimo que as pessoas se tornem atrozes  albatrozes.
A cabeça é um coração com cabelo.
E difícil é manter-lhe a musculação sangrenta, a vocação da romã, o estojo de rubis.
Quando rondo a minha Cidade, o maior nirvana que posso é a porta metálica de correr da receosa ourivesaria.
E isto é isto sempre, toda a noite e cada dia.

Ideário de Coimbra - 151 (fragmento 2)


Berenice Abbott
El at Columbus Avenue and Broadway c. 1935-39
© Berenice Abbott/Commerce Graphics Ltd, Inc.


Serei humilde e arrefecido como a Noite.
Enquanto as casas bordam bairros, serei.
Sonharei um pouco ainda com pessoas amigas.
Os que se chamam Sousa, Tavares, Antunes, Reis.

Vou a caminho, guarda-me um pouco de água branca.
No Douro, a natureza dos homens floresce encostas.
As pessoas que foram para França sonham perdizes.
É por vezes terrível alimentar anjos-da-guarda.

Cuidado, conheço um casal feliz!
Rondam a casa própria como irmãos de sempre
& sangue.
É especial, isto de escorar com versos a terracota

do dia-a-dia.
Uma pessoa pode quadras escrever e não ter
de ser punida por isso, pelo menos é
o que acho quando a humildade me violenta.

Azeitonas, navalhas, luas & bailes
reverberam fragrâncias de quando em casa
ninguém me tinha morrido, aquando,
amando, laranjas e águas se compenetravam.

Fiz hoje uma prosa a partir de um homem
com cão & mulher.
(Mas é verdade que isto é Coimbra, Calhabé,
um entardenoitecer de Inverno, segunda-feira.)

Quando reflorescer não puder já,
recordarei a Berlim não visitada,
a Figueira dos Gelados Rajá
e a Cruz dos Morouços e a Cumeada.

Terei sido meu futuro anterior mesmo.
Um colector de rosas verbais, menos ou mais.
Terei sido de gatos e pardais sem distinção,
que tal é a minha e foi, será, a condição.

25/01/2011

Ideário de Coimbra - 151 (fragmento 1)


© F.J. - Girassóis



151. CHOUPANA E OUTRAS VIOLÊNCIAS
Coimbra, segunda-feira, 24 de Janeiro de 2011

uma choupana quase perdida na extensão do campo agrícola. É onde o cultivador guarda as alfaias. Mas não só – dentro, um catre guarda-lhe algumas vezes o sono. Numa arca, conserva comida humilde e justa: bacalhau, conservas, algum vinho, azeite, vinagre. O resto da comida vem da terra: cebolas, batatas, alhos, couves, cenouras. Nabos. A um canto, o cultivador faz lume seguro. Uma panela de ferro acciona o caldo. Quando chove muito, o homem liberta-se do amanho e recolhe ossos & olhar à choupana. É uma construção mais sólida do que parece. Ele instituiu-a com traves firmes. O recanto da lareira é uma coluna de pedra. Todo o resto do edifício é de madeira. O chão é terra calcada. Há um cão chamado Piloto. O animal conhece o cultivador desde sempre. Quando o homem vai a casa amar a mulher, o cão fica. Já conheceu duas cadelas, mas foi há tempo de mais para recordar ainda esse desejo, essa fremência, esse lapso de loucura a partir das pernas traseiras. No Estio, o Mundo arde como uma laranja. No Outono, é mentira que as coisas desistam. Aves sulcam o sul. A terra dá, a terra permite. Quando o cão morrer, a terra abrir-se-á em mãe. O mesmo quando o homem e a mulher dele. Ao contrário do cão, homem e mulher não têm filhos. Na casa alta da aldeia, ao alto, a mulher espera em acção. Quando o homem vem, dá-lhe carne: a da ceia e a do corpo dela. É um contrato justo e humilde como a comida que, na arca da choupana, o mantém vivo. E no Inverno o cão adormece de olhos abertos ante a Grande Lua. É então que a Primavera traz um cesto de brisas e morangos, parece uma menina, Santo Deus.

Ideário de Coimbra - entradas 147 e 148

147. A MINHA TERESA COMPLETA OS ONZE PRIMEIROS ANOS DE VIDA
Coimbra e Pombal, quarta-feira, 19 de Janeiro de 2011

Às 11h30, a minha Teresa completa os primeiros onze anos da vida dela.

*

Manhã de hialina luz condecorada,
da névoa coada d’álamos e faias,
não te me faças tarde, não saias,
fica cristalina, fria, consolada.





148. VENTO DO PASSAMENTO NÃO CORTÊS
Coimbra, quinta-feira, 20 de Janeiro de 2011


Continuo doente. Afonia quase total, bruscas amplitudes térmicas, uma melancolia física que à noite descamba em sonhos de acordado na solidão do catre, tosse seca sem perspectiva de expectoração, geral agonia. Trabalhar, trabalho – mas, como aliás quase sempre, pouco e mal. A ver que vai isto dar. Tremura das mãos sem ser por frio: das quilolitragens de há (tantos) anos. Solidão e lucidez.
Hoje, porém, formoso, muito belo sol januário. Vou ao barbeiro a ser tosquiado. Aula entre as 15h30 e as 17h30: sacrifício. Explicação de Português a um puto às 18h menos 15 m: sacrifício. Entre as 20h30 e as 21h00, esperar pelo Zé Manel Girão no Continente: receber dele uma cópia do filme A Guerra do Fogo (para mostrar aos formando de Coimbra na semana que vem, virá se vier). Agora (14h38m), barbeiro.

*

Leitura de três livros de Roberto Bolaño: Os Detectives Selvagens, O Terceiro Reich e Nocturno Chileno, neste Janeiro adoecido.

*

O vento desceu as escadas da tarde para cair, frio, aos pés da noite. O palor anil-escuro ministra suavidade aos homens passantes, em alguns dos quais se agasalha o suave desejo de amar pediatricamente a mulher que têm (ou não têm, ou querem ter, ou que tiveram).

*

No Diário de Coimbra de hoje (Necrologia, página 8), este terror ínfimo, íntimo e multitudinário à vez mesma:

COIMBRA
DANIEL FILIPE NASCIMENTO CORTÊS faleceu com 12 anos (…)

Uma criança morta. Tinha nome de poeta (bom poeta) português: Daniel Filipe. E tinha por apelidos o paradoxo da morte aos doze anos: Nascimento Cortês.

(…) Era natural de Coimbra e residia em S. Martinho de Árvore.

Não imagino – nem posso, nem quero imaginar o que seja tal coisa.




21/01/2011

Rosário Breve nº 190 - in www.oribatejo.pt




Beatificação de Carlos Castro já!

A tragicomédia da vida nacional não é preguiçosa. Antes pelo contrário, está tão mais viva quão menos recomendável. Seguem-se alguns itens.
Em vertiginoso curso, o processo de beatificação de Santa Frívola, que em vida se chamou Carlos Castro. Martirizado em halo de santidade por um fedelho de Cantanhede deslumbrado com o barulho das luzes ídolo-televisivas, o malogrado “socialite” da escória socio-cor-de-rosa parece importar-nos a todos muito mais do que um tal capitão de Abril chamado Vítor Alves. Vítor quem? Exacto.
GALP & resto da quadrilha gasolineira de volta à hiperinflação concertada dos combustíveis. Deixa andar, povinho, coitado mas é do Carlos Castro.
O versejador de Águeda continua com a mania de que ele é que é o 25 de Abril, a Resistência, a Poesia, a Democracia. Não é nada.
Um tipo mata o amante da ex-companheira com dois tiros pelas costas. Presente ao juiz, certo detalhe técnico fá-lo sair em liberdade enquanto espera julgamento. Certo. Porreiro. Deve ser justo.
Sócrates etc.
Impostos disparam para cima, salários para baixo, desemprego para cima, justiça para baixo: com tanto acimabaixoacimabaixo, isto já parece cópula sexual.
Eu sei, eu sei: a crónica da semana passada prometia melhores notícias para esta. Não fui capaz de encontrar nenhuma. Nem eu, nem a rapaziada do Sporting, clube que cada vez mais se belenensiza. Por falar em Belém, vai haver eleições presidenciais um dia destes.
Mas Carlos Castro não pode já, como sempre esperei, vir a ser Presidente da República. Será, quando muito, santa. Santa no roxo lírio dos nossos corações.
Dos nossos frívolos corações, ó saudoso capitão Vítor Alves.


19/01/2011

Ideário de Coimbra - 143



143. EM BRANCO
Coimbra, quinta-feira, 6 de Janeiro de 2011

Quero hoje escrever um texto branco. A minha Coimbra foi sitiada pela chuva – e já anoiteceu (a seu dono). Fui cumprimentado pelo professor benfiquista. Uma moça ruça e russa (empregada em uma taberna próxima) debate-se com um guarda-chuva (também) branco. Quero hoje escrever uma (p)rosa amarela. Sou ora destes lados, vou morrer entre mulheres de botas altas a quem a estabilidade económica nunca pareceu doença. Enquanto houve luz na quinta-feira possível, assisti a árvores que subiam os frutos ao ar – tornam-me sempre quase feliz, capaz sempre de respirar pelos olhos. A gente enegrece já não tão devagar. E no entanto é textos brancos o que persegue. Xeque, califa, sultão, emir, grão-vizir. Rosa, gardénia, jacinto-de-água, lis, elixir. Ou um estádio de tempo puro.

*

Tento outro texto em branco.
Dispo-me e disponho-me.
Ponho-me na mulher imagina/da/ária.
Fico-em (fico-me) falta.

*

Outra vez: vá lá: em branco.
Sou destes sítios. Há laranjeiras em pátios, pessoas
que falam de futebol com a desenvoltura crisóstoma
dos loucos mansos.

*

Nunca duvides de que exerço como um príncipe a solidão que me cabe. Não como um pobre tolo, mas como um pobre. Um pobre príncipe, como um príncipe pobre. Vem de princeps, o que principia, a palavra. Como o que principia a palavra. Como um helicóptero do Instituto Nacional de Emergência Médica no céu da noite, um pássaro de ferro, creolina & gasolina transportando a aflição de alguéns. Ora, o contrário de alguéns é solidão: e aí exerce o príncipe, no céu da noite, essa etimologia de todos os princípios, todas as manhãs, todos os dias.


Ideário de Coimbra - 147


© F.J.
Alqueidão, Agosto de 2010



146. NO TÚNEL
Coimbra, terça-feira, 18 de Janeiro de 2011

O túnel dos dias, das noites descampadas,
das casas móveis, das carretas paradas.
Estes dias, noites como esta: quietos
movimentos da mente entre luzes
que, como fósforos, adensam mais e mais
a escuridão derredor, a começar pela
de dentro. Um andar por aí aos limões,
às laranjas, subindo a estrela da mão
às estranhamente esquecidas árvores citrinas,
que são verdes e de ouro como meninas.
Um, digo-o, apascentar-se em antros a que o mofo
dá pátina de gruta e/ou museu, ou eu
nem sei quanto digo, se, no que digo.
Bastaria não insistir tanto para existir um
pouco mais? Não o sei – e digo-o, também.
De dentro. Um andar por aí aos limites,
às aragens, subindo estranhamente citrina
a mão às esquecidas estrelas,
que, meninas, são verdouras e belas.
O túnel.
O túnel dos dias, das noites almadas,
das asas falíveis, das grutas gretadas.
Uma terça-feira, um sábado, um rapaz
Frederico pai de um rapaz Francisco,
rápidas explosões oblíquas no lago
negro da noite (uma destas noites, um
dia destes) – e a mania dos versos
como fósforo.
Pode uma mulher até feia embelezar um sonho?
Dois cães mortos fingir podem dormir sobre relvado?
Faias e álamos são ou não belas palavras-arvoris?
E um homem sozinho ante um cálice de anis?
Em Sintra, certa ocasião, acabou-se-me uma luz.
Só se sabe depois de acabar (como a saúde).
Hoje, vivo não/de, não/para, não/com, mas/vivo.
A Cidade vive de aquários e de capoeiras.
Roubei uma laranja dulcíssima à vinda
para bandas do S. Paulo. A pessoa pode ser.
A pessoa pode não ser. Pode querer ser. Pode
até querer não ser – digo – seu/dela
mesmo contrário. Há sempre uma literatura
abusiva no modo como a vida, enfim,
como a vida. Um andar por aí aos limões,
uma íntima secção resistindo à pusilanimidade,
à escória, à escumalha, à sinistenebrosa
maioria humana que, buscando fazer
da merda ouro, faz do ouro merda.
E a merda acumula-se no túnel.
Nos maus livros também, aliás. Os
mais-vendidos e a palha partilham
ser fardos leves e para burros.
De dentro. Poucos dias para tantas noites.
Revoada e voragem. A cor grená e a boca.
As tetas das cadelas (vivas) e os postos de
abastecimento de combustíveis (matadores).
Ou um pouco de comida, só, só num quarto
entorpecido pelo frio natural da solidão
dos móveis, dos apetrechos. Um sabor
a canela arrefecida na cana da estante
fraca (quem apreecompreende isto?).
Diálogos de sonho na minha cabeça
que envelhece mas não dorme:
–  Esta jaqueta de ganga – digo eu
– é boa, quarenta e cinco euros,
boa.
Ela diz: – Sim, qualidade garantida,
tamanho ideal para o seu
corpo.
Eu: – O meu corpo?
Ela: – Volte cá.
E eu digo que: – Nem sempre
posso comprar, só se voltar
por si.
E ela: – Então, volte.
E eu levo a jaqueta – e nunca
volto: nunca se volta ao mesmo
sonho, à mesma ganga,
só ao mesmo túnel
mesmo.

18/01/2011

Ideário de Coimbra - entradas 144 e 145

144. O FUTURO É UMA M.
Coimbra, sábado, 15 de Janeiro de 2011

O futuro é uma mentira ainda não contada.
O presente realiza-se em visão de árvores que sentinelam casas.
Colho o amaríssimo açúcar das expectativas.
O sol bate nos carros como a chuva também.
O passado conta alguns mortos, nem todos vivos já.
Tosses, rouquidões, panaceias de limão & mel.
Depois já era assim, isto.
A minha Cidade conta alguns vivos, nem todos mortos ainda.
E se a anémona me toca as têmporas, serei água também, como tu aliás e a lilás.

145. FATO MOLHADO
Coimbra, segunda-feira, 17 de Janeiro de 2011

Como um fato molhado, a melancolia atém-se ao corpo pela noitinha. É a hora a que os desvalidos se rendem à evidência da dissipação. Estou doente desde o dia 7. À gripe, sucedeu-se a afonia. Geral quebranto do corpo. Impossível trabalhar, hoje. Telefonei, rouquejei desculpas (ou pedido delas) e fechei-me em casa e em roupa.

15/01/2011

Rosário Breve n.º 189 - in O RIBATEJO - 14 de Janeiro de 2010 - www.oribatejo.pt


Verdades banais





Tenho acordado com a boca entorpecida, ou anestesiada, por algumas verdades banais e incontestáveis. Uma delas é esta: a população activa de Portugal cabe inteirinha e toda no Pavilhão Atlântico em noite de Tony Carreira no cartaz. Verdade. Outra: Cavaco nunca antipatizou com a PIDE. Verdade. Mais uma: ninguém português gosta mesmo a sério da língua portuguesa. Verdade. Ainda: o Cristiano Ronaldo é uma petinga paga a preço de robalo esfregado em lavagante. Certo.
Quero eu dizer: a realidade não é suficiente para uma pessoa ser feliz. Quando muito, dará para um gajo andar contentinho. O ar da respiração vem vindo e vai chegando. A broa amolenta as cáries. A TVI degrada, a SIC não ajuda e a RTP agora também já é brasileira como a TAP. Já temos tornados de arranca-telhas, vá que não vá. Os velhos tornam-se avieiros de ossos pedestres afundados em água. Quem pode, come enguias. Quem não pode, babuja sampaísmos e guterrices as mais cristãs.
Mas só cá entre nós: o Messi é muito, mas mesmo muito, melhor do que o Cristianozito. Ou seja: o desemprego não depende do Mourinho, a formação profissional deveria ser baseada nos escalões do Sporting, não nos de mentira do Sócrates, e o resto também é verdadeiro e banal.
Tudo isto para vos dizer/garantir que ando chateado. O empobrecimento tem por costume ser, antes de físico, moral. E a gravíssima amoralidade deste País choca. Embate. Colide. Agride. Porque isto é muita filhadepê junta. Os gajos da justiça. Os da saúde. Os da educação. Os das finanças. Os do resto. Os que me fazem ladrar em vão à cão ão ão.
Para a semana, porém, estarei de regresso ao vosso convívio com melhores notícias.

11/01/2011

Rosário Breve nº 188 - de 7 de Janeiro de 2010 - in O RIBATEJO - www.oribatejo.pt



BANalidades

Eu tinha-vos avisado de que 2011 seria pior do que 2010. Aí está a prova cabal e definitiva e incontestável: o filho do Valentim Loureiro, o Joãozito do naufrágio do Boavista Futebol Clube, está de volta. E não é ao dirigismo apitodourador. É à música. O grupelho dele, uma coisa fedelha chamada BAN, irrompe do esquecimento de onde nunca saiu e volta com um disco. Parece que é “cantado” em inglês. Só nos faltava esta. Objectar-me-ão os leitores mais serenos que isto não traz mal ao mundo. Pois não. O problema, re-objecto eu, é que, quando se trata de falar de coisas que ao mundo trazem e fazem bem, ficamos sempre sem assunto de conversa. Pois não é assim?
O rapaz João Loureiro prima pela invejável lisura da irrelevância. Nem é por ser gordo. Nem é por ser filho do Valentim. É por ser ele. É por ser João. É por ser Loureiro. É por ser tão BANal. É por nos confrontar com a nossa mesma irrelevância, com o nosso descuido de nós mesmos, com a nossa popularização de zeros artísticos, desportivos, recreativos, culturais e políticos. E educativos. E sociológicos. E económicos. E empresariais. E ecológicos. E agrícolas. E piscatórios. E literários. E jornalísticos também, já agora.
No fundo, talvez eu inveje profundamente joões destes. Talvez eu fosse feliz se me joanizasse, se me loureirasse. Como não, pago em arrobas de melancolia um nunca desistir de crer na força da criatividade honesta e na força da honestidade criativa. Não irei longe, assim. Eu sei. Todavia, também não é longe que quero ir. Eu nem quero ir. Quero estar. Onde? No País que não há: a utópica Mãe-Pátria onde o crime de lesa-Estado é prevenido, primeiro, e punido, depois; onde o autarcazito local não me pode impingir roubos de igreja; onde a escola me ensina a ler, a escrever e a contar para que eu possa pensar pela minha própria cabeça; onde a besta do marido rural não assassina a mulher com a caçadeira dos coelhos; onde o parlamentar é sério e trabalha; e onde o João é reconhecido como um Zé-Ninguém) igual a cada um de nós.
(Crònicazita áspera, eu sei: mas é o BAN nosso de cada dia.)

05/01/2011

Ideário de Coimbra - podografias de retorno - 136

GAP

Coimbra, quinta-feira, 23 de Dezembro de 2010

I

Possuo (é verdade) quanto vejo.
É meu o mundo e minha a cinza azul.
Desta pessoa os olhos claros possuo a patente.
E é que sou mísero e feliz em demais gente.

Encaro as árvores como acontecimentos
e os pássaros como consequências.
Ao balcão, os homens preenchem-me o ar
que o pensamento urde para ser vento
na estepe da cabeça toda mental e só.

Não seja a vida reles como a digo.
É uma prece de amigo, uma quimera
(como todas vã e homérica, como todas).
E de poesia cinjo plano, poupança e reforma.

Como ilhas gregas a um olhar nórdico.
Como camiões num barco em a manhã suja.
Como areia varrida casa afora pela mulher
do pescador, como todas, como todas.

O céu enegrece a meio da tarde, penso na vida.
Um desfile de cães festeja o adro da igreja.
A maioria das pessoas é Maio o ano todo.
E eu possuo Novembros em vórtice-catadupa.

Agora, vê: isto não tem mal que se lhe diga.
Esmaecem os anis vertidos a poente.
Que clara porém é no entanto a coisa
entre tanta coisa, o lápis na loja,

a criança burilada a louro, o avô
que pelo centro comercial a pastoreia
nataliciamente: e eu aqui, em urdume
narrativo o mais insensato, pois que
sem história (que) nem te conto.

Falei com a senhora, não me esqueci.
Um senhor fumava cachimbo,
adoçava-nos o ar de representações
do Oriente, era bom ser flor de estufa
na carnação carmim da labiação mais
ortoépia.

Um caule de trevo acidula a poesia mijona,
que quanto vejo, amiga, possuo e desejo.

Agora, lê: isto é tudo de ser gente além
da gente que nos fez, uma noite de
princípio de Verão em década que
só dos livros conhecemos – ou então
da BBC.

Agora, adultos, tratam-nos por senhor
onde pagamos em dinheiro, falam-nos
da Académica como se a Académica
nos interessasse mais do que o
Celtic de Glasgow. Ai, eu não! Eu
ando aqui a arrendar espaços vãos e
homéricos.

Obras para um novo Centro Escolar,
isto num sítio-época em que não
há crianças, excepto talvez aquela
com seu avôzinho perto do enfarte,
da chegadas & partidas – linha 3
mind the gap.

E um pouco que de si mesma saia a pessoa
faz-se, direi, barco em terra, o ar do
vento mental na cabeça que é pernas,
direi, toda só, só pessoa que possui
e se é aos homens, ao balcão,
à claridade da noite.
Diz que chove.
Diz.
Di-lo-me.

II

I wonder where the city boys can go.
Mind the gap, nevertheless mind the gap.
E a estranheza de não serem eles
portugueses, não usufruírem do fiapo
de bacalhau norueguês no dente que
se azula, nem hálito a alho,
nem hábito de Thomas Stearns
Eliot, que aliás se desamerica-
nizou a julgar pela Ática bilingue
dos Four Quatro Quartet(o)s e da
The Waste Land, essa terra
estéril-pasteurizada dos sonhos.
Olha, agora lê: possuo apenas
quanto amo.
E quanto amo não é o que
olho, mas o que vejo.

III

E agora fala-me da tentação das tílias.
Fala-me da desarrumação das famílias.


Canzoada Assaltante