26/02/2008

Memórias Regressivas


Mão.
Caramulo, 1 de Fevereiro de 2008.




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Somos apenas boca. Quem canta o coração
distante e são que entre as coisas mora?

R. M. Rilke, Schöneck, Setembro de 1923





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(Talvez os versos sejam corpos veiculares da memória regressiva. Tenho quase tantos versos quantas regressões. O vice-versa também há-de ser verdade. Sigamos, pois.)

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Tábua

I. Sem Dúvida
Caramulo, fim da manhã de 26 de Fevereiro de 2008

II. Clara Idade
Caramulo, fim da manhã de 22 de Fevereiro de 2008


III. Genealogia
Caramulo, entardenoitecer de 20 de Fevereiro de 2008

IV. Emboragora
Caramulo, entardenoitecer de 20 de Fevereiro de 2008

V. O Pássaro – Um de Novembro de 1981
Caramulo, noite de 20 de Fevereiro de 2008

VI. N. V. e N. P.
Caramulo, tarde de 15 de Fevereiro de 2008

VII. Dísticos Muito Eficazes para Mandar Deus à.
Caramulo, tarde de 14 de Fevereiro de 2008

VIII. Bela Barriga Branca
Caramulo, tarde de 7 de Fevereiro de 2008

IX. Mais Cinco Venham
Caramulo, tarde de 6 de Fevereiro de 2008




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I. Sem Dúvida
Caramulo, fim da manhã de 26 de Fevereiro de 2008

Somos homens e mulheres, estamos por aqui.
Há em torno árvores: respiram Tempo como pedras.
Sabemos que um rio passa e fica, algures.
Somos homens e mulheres: mal ao rio nos comparamos.
Algumas casas parecem-nos emoções petrificadas.
Sobrevivemos mais remediadamente quão mais desamamos.

Homens e mulheres concorreram-me o tempo genealógico.
Agora o meu nome é todo feito de seus esquecidos nomes.
De seus esquecidos nomes, da cor de tantos olhos,
das estrelas apeadas que suas mãos foram.
Sinto tal herança com precisa e preciosa nitidez.
De nada me vale no escuro, tal vão património.

Já tive dias.
Hoje habito o mesmo dia – quase sempre de noite.
É feito de um punhado de areia: algumas datas.
Um cão ruivo atravessa a estrada.
Nunca saberemos aonde se dirigem os animais:
a que íntimos redutos, a que redutos inexpugnáveis.

Uma mulher jovem, muito gorda e muito bonita, na mesma estrada.
Também desconheço os aondes dela.
Não terá trinta anos: nem para trás nem adiante.
Somos homens e mulheres com veias de mármore.
Caminhamos lapidarmente.
Falamos epigraficamente.

É tudo não formoso. Não digo viver. Digo dizer.
É tudo tão formoso e inútil: o que dizemos.
Vulvas que palpitam corações.
As latas de conservas nas prateleiras das mercearias.
Os cães ruivos elegantes como mulheres gordas e lindas.
O Sol na pele das mãos muito lento, muito lentas.

Mãos de homens, mãos de mulheres, mãos de irmãos.
Estrelas enferrujando à luz óxida.
E quando um dia nos parecermos tanto com os retratos não nossos?
Entardece a cidade, coalhado o desumano ouro das igrejas.
Cães um pouco mais rápidos, cristais e flanelas.
E a doçura letal dos parques arrefecendo na noite como pessoas.

Nunca reparastes que vamos perdendo dúvidas?
Não digo as dívidas, digo as dúvidas.
Devo ter vivido estes versos noutro sonho doutro eu.
Em um mesmoutro dia, arrefecendo os parques.
Uma lâmina de rio, como um ruivo cão passando.
E como todos nós lapidar, datado, alhures, fluvial.



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II. Clara Idade
Caramulo, fim da manhã de 22 de Fevereiro de 2008


1. Fui Esta Manhã

Fui esta manhã tomado da clara idade do Sol.
Do velho casario ressumava a húmida corrupção.
Era muito cedo – e a geada cristalizava o arrebol,
muito bonitos eram o cedo e a sedução.

Fui comprar comer para a gata.
Em torno adejava a fraca vida.
Fumando fui eu indo à arreata
de mim mesmo por as Escadinhas de Santa Margarida.

Parece a serra pedra em cinturão.
Azulam lá do alto siderações.
O vento vem mentolar a respiração.
No parque há, de folhas, estremeções.

Uma senhora corcundava, de negro manto,
de mil portas e hortas costumeira.
E eu falo sozinho – digo que canto,
mas não, falo sozinho – a vida inteira.

Fui esta manhã
etc.

2. Mal Bem

De teu mal me não queiras constante
nem por bem.
Eu nunca falo para a vida, mas adiante:
nem por o mal nem por o bem.

3. S. N., T. D.

Dormi bem. Toda a noite recebi, em profusão,
de sonhos o ramalhete não sonhado.
Cedo acordei. Na crua hora, a comunhão
pronta tomei da língua e do falado.

Não irei hoje à cidade. Eu fico aqui.
Às vezes (mas depende da vontade)
vou à cidade, hoje não, que a vontade
é nunca ir, porque já fui e tudo vi.

Vi o que depois não sonho. Até prefiro
dormir de pé entre paragens.
Rebenta um pneu, parece um tiro:
desligo a têvê, farto de imagens.

Tenho trabalho à tarde, comprei comer.
Já pus a água ao lume: minha vida.
No estar vou entretendo eu o ser.
E já sonho nenhum, tudo dormida.

4. Entre as Coisas, Mas
Caramulo, tarde de 22 de Fevereiro de 2008


Pequenos cartões coloridos entre as coisas.
Entre as coisas não coloridas: as vidas.
Eu afirmo nunca falar da vida – e
não faço outra coisa: nem outra vida.

Tenho, como toda a gente, uma importância barbitúrica.
Já só subo aos telhados como antena de televisão,
não por ser gato.
Tenho versos: muitos: muitos
pequenos cartões coloridos.

Visões acorrem, discursivas como comboios.
Vêm do vento breve, do frio vento palavroso.
Eu não ando para aqui a engonhar.
Eu vou no comboio – e fico, sempre.

Tudo é sempre uma antemão de comboios, esses rios de ferro.
Pastelarias fulgem folhados de fria luz,
longe.
Tudo é tão apeadeiro na nossa escol(h)a,
não é? Sim,
mas.

5. T.

Venderam-nos como destino a decisão.
Fizemos mal, digo eu, em o comprar.
Destino não é para adiar.
Só decidir é qu’inda dá tesão.

6. R.

Tive um lamiré de vida de quarto arrendado
em Lisboa.
Não era já a vida – e eu queria ainda
que fosse.
Tudo era pouco depois.
Tudo era pouco, depois.
Recordo desses anos a saudade viva
como uma ferida
de uma filha
viva
noutro quarto
noutra cidade.
A gente acumula-se
soma-se
some-se
a gente dá
resto zero
a gente dá-se
a zeros
e
a
restos.



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III. Genealogia
Caramulo, entardenoitecer de 20 de Fevereiro de 2008


Sim
o que sou dos que antes me foram
dei já de mim.
A dádiva é de livro
que não de contabilidade.

Homens e mulheres
anteriores todas e todos
me foram antes
em linha não legível.

História sem contador
a da viva mortandade
involuntário amor
esquecida vontade.

Certa cor de olhos
certo lar de lume
incertos rapazitos
hábito e costume.

Sim
o que serei daqui a pouco
na linha
de assim-assins
uma rubra maneira
uma atenção aos limoeiros
um cuidar de estradas
um homem
e
uma mulher
e
outra
e
outra
vez.



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IV. Emboragora
Caramulo, entardenoitecer de 20 de Fevereiro de 2008


Agora já não é para esperar.
Agora é para mudar de casa e de dentes.
Agora já não dá para ensinar
nem p’r’aprender, de sãs maçãs, pêras doentes.

Um marulhar de olival quero ventoso.
Da fímbria litoral ’ma maresia.
Um peixe assado que cheire, maravilhoso,
ao que nos cheira o mar de noite e dia.

Agora já não é para levar.
Nem poemas nem telefonemas.
A gente tem uma boca. Tem
uma língua? Então agora a gente diz.

O tempo é só este.
O tempo é tod’ oeste.
Uma hora numa horta tendo morangos.
Um raio de luz solar num chão estrangeiro.
Um repicar de sino sério, éreo, soalheiro.
E uma cassete c’ uns fados e uns tangos.

Agora é toda a hora.
Vam’ lá embora.



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V. O Pássaro – Um de Novembro de 1981
Caramulo, noitede 20 de Fevereiro de 2008


Agora ele vai morrer.
Agora já está: não é já.
Agora ele é um que me tuteia.
A vida toda.
A morte toda.
Agora é aquele dia inscrito no título.



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VI. N. V. e N. P.
Caramulo, tarde de 15 de Fevereiro de 2008


Nenhuma virgindade promete o céu de todos.
A todos dado, de satélites furado, ri-se baixo.
Escala de esfera não sideral ainda, ele ri:
de nós, de nosso formigueiro medo do pluvial mijo.
Um gajo aqui em baixo a dar de literatura grega.
Uma gaja aqui em baixo a fazer pela vida na gare.
E o céu, menos zero de moral, em ademanes de gozo.

Tenho visto igrejas com pessoas assustadas dentro.
A terra assusta-as, o comércio assusta-as.
Assusta-as a clara inteligência do barqueiro.
Assusta-as a clara inteligência do carpinteiro de barcos.
Nenhuma, nenhum, nada promete.



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VII. Dísticos Muito Eficazes para Mandar Deus à
Caramulo, tarde de 14 de Fevereiro de 2008


1.

Quando uma noite o corpo que fomos já não,
de dia seremos ’inda sombra pelo chão.

2.

Vasta é, de Deus, a ignorância.
Mais que a Dele a nossa, que O criámos.

3.

Chegamos a casa pela noite, descobrimos doentes as crianças.
Não o estão: são-no, pois que como nós crescem.

4.

Fingirmo-nos vivos entre os que o estão, não.
Antes tal ante mortos que, vivos, são.

5.

Mui perto está, por vezes dentro, o inimigo.
O amigo só é, não é de estar.

6.

Uma hora contente que nos caia, uma só.
Do céu nos não cairá ela, nem Dele.

7.

Um manual de linguística inglesa e a Hélade por dez euros.
Cá se fazem, cá se pagam.

8.

Areia da praia entre dedos correndo.
O que te roça, conta-te.

9.

Conta-te.
Não conta contigo.

10.

– Então mas o senhor vem pràqui mandar o Senhor à merda?
– Sim, mas não é o seu.

11.

– Então mas o senhor vem pràqui mandar o Senhor à merda?
– Sim, mas não é o senhor.

12.

Insistamos na tranquila amargura dos fins de tarde.
Insistamos na tranquila amargura dos fins.

13.

Insistamos.
Se estamos.

14.

Somos.
Fomos.

15.

Nós fomos.
Vai Tu.



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VIII. Bela Barriga Branca
Caramulo, tarde de 7 de Fevereiro de 2008


1.

Pode ser temível, a beleza.
A beleza da cidade, na tarde ao Sol, é temível.
Também é temível.
Se me comove a visão das bancadas de fruta à porta
das mercearias? Comove, sim, muito.
Um rapaz vem pela rua: vejo-lhe o rosto já
adulto, já temível, triste já.
Ando por aqui.
Há muitos anos ando.
Um homem antiguecendo na praça desflorada pelo
Sol: sua roupa pobre, seu olhar ainda atónito como
de criança que se perca dos pais.
E no entanto ele é belo e poderoso: está vivo ao
Sol e é temível.
Respira ainda – como se profanasse.
É como o amor feito sozinho.
Eu caminho.
Devasso as ruas que o comércio abre e fecha.
Olho os brinquedos, as barras de sabão, os púcaros
de folha, a áspera vassoura, as revistas que
fotografam mulheres impossíveis, os cadernos, as
toalhas de lotaria, os chás na montra tesos
de pó, os soutiens vazios, os óculos cegos,
os dentífricos sorrindo sozinhos para alguém
que os óculos não vêem.
Daqui a pouco, entro naquela loja, compro dois
quilos de trinca de arroz, procuro pombas e
dou-lhes de comer. Posso fazer isso.

2.

Branca de barriga de peixe é a minha senhora.
Duas esferas de azul-marinho confirmam o mar: os olhos.



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IX. Mais Cinco Venham
Caramulo, tarde de 6 de Fevereiro de 2008


1. Conselho

Ama do teu corpo longamente a brev’ idade
É um bom conselho, este que te dou não a mim.
Mais vida terás em minutos não contados que na vida.
Uma flor é uma flor, um jardim é um jardim.

Às portas da tarde, aflora a branca luz guardiã.
Os monumentos esquecem-te, não queiras saber.
Se a História te formigou doenças e contribuições,
ama-a longamente também – e manda-a foder.

2. Manada à Luz

Lapidreja a luz, laminada, nossa vã lã
ao longo de ruas vácuas, dardejadas.
Nunca mais é ontem nem amanhã,
muito ladram cadelas paridas, acabadas.

Das cascárvores cai a tinha folheada.
Pedripassaritos fisgam cantos roucos.
Sou eu mais quatro homens: a manada
não deixa que, uma vez, sejamos poucos.

3. Exclamação

Em quieta vila vou a vida desossando.
Aqui não passam carros, não passa nada.
O Tempo passa, caça e vai ficando.
A luz é amarela; a Lua, prateada.

É tão bonito viver a vida-vila!
É tão bonito ser de Portugal!
O ponto d’exclamação é uma pila!
Invertida, mas pila, afinal!

4. Comparação

Um dia destes, temos, leitor, de comparar
as nossas, tua e minha, colecções de fisdeputa.
Eu tenho tantos. E tu tens quantos?
Temos um dia destes de cotejar.

Eu tenho um, tu tens algum?
Eu tenho dois chamados bois.
Tu tens uns tr~es, digo eu, talvez,
que são só um, contando os dois.

5. Do Caraças, de Postal

Deve ser do caraças, ser triste.
Ser de uma terra estrangeira no próprio corpo.
Pertencer a uma nação parecida com os nossos olhos
deve ser triste, ser do caraças.

Portugal deve ser triste, se (de) lá fores.
Deve ter praias debruadas a azulouro.
Coisas bonitas – e de postal.
Deve ser triste e do caraças, ser de postal.

2 comentários:

Manuel da Mata disse...

6:R
É: "a gente dá-se
a zeros
e
a
restos".

Abraço,
Manuel

Manuel da Mata disse...

6:R
É: "a gente dá-se
a zeros
e
a
restos".

Abraço,
Manuel

Canzoada Assaltante