13/05/2007

Rostos, Ripas







Deu a recente vida dois, três dias seguidos de sol. Agora
amanhece o domingo pendurado de cordames de navio:
de grossa, a chuva torna vertical a terra, navega-a a prumo.
Deitados na cama, nus os peitos,
guardam-se de o que os sitia:
as palavras futuras do domingo acumuladas no corredor,
além da porta, tentando forçar a entrada no quarto.

Disfarçam, descalços, uma dança, um tango de pijamas.
Ele toma banho primeiro, a cabeça branca de espuma, os olhos
postos no postigo cor-de-pompeia, onde a chuva.
Ela ferve café na cozinha, consulta as mensagens tardias
no telemóvel. Na varanda, a roupa posta a secar
adeja panda. Ele veste roupa perfumada de ferro quente,
ela acode à chuva domesticada da banheira, ele espera por ela.

As últimas tintas da noite escarolam ainda, da luz, fitas
ominosas. Cultiva a vizinha rosas, que são a quarta dimensão.
Eles vão no carro, não é longe a pastelaria, mas com esta
chuva. Dentro, as famílias respiratórias metem bolos
através do vapor, fumegam dentes, o som do televisor
sempre muito alto, tossem cor os caramelos de fruta,
o pus das bolas-de-berlim, o glaucoma torrado das natas.

De satélite, tudo é tão pouco: eles sabem. Talvez por isso
só queiram café e água. Apreciam o pão exposto: obra antiga.
Trocam a nota de vinte que conseguiram salvar do sábado,
cigarros para os dois, cinco salvos para o gasóleo. Longe, como
um idioma estrangeiro, o vale alcatifa o corredor entre serras.
Animais de trabalho falam mágoas fechadas em currais
não sancionados pela outra Europa, a de cima.

Alimentam-se de breves certezas e de frangos pequenos.
No regresso, uma árvore japonesa abre as asas como um pavão exilado.
Sorriem à vista da árvore-pavão: tudo é tão barato, que só
viver custa. Ele fecha-se na garagem para inventar carpintarias,
ela sobe à sala da lareira e revê álbuns de fotografias: o que ele
faz à madeira, faz ela à memória. Resina comum cola e vivifica
rostos, ripas.

Deitam-se para lá da sebe de palavras. Orações murmuram,
os pés tocando-se no outro país do ante-sono. O vento enxugou
a terra, a varanda, a roupa invertebrada que ela recolheu enquanto
ele lavava os dentes e consultava no espelho a aldeia da cara: a casa
do olhar, o caminho da boca, as alminhas cavernosas do nariz.
Amanhã, tem de se mudar o óleo do carro. Sim. Na volta, traz
açúcar. Boa noite. Boa noite.



Texto: Caramulo, tarde de domingo, 13 de Maio de 2007
Fotografia: Caramulo, noite de 27 de Março de 2007

3 comentários:

Solum disse...

Gande cão, já não te bastava ser poeta e agora és fotógrafo.

Paula Raposo disse...

A fotografia, as palavras, tudo lindíssimo!

Daniel Abrunheiro disse...

Paula: se fizeres pedido/mail para

anoiteceraotomdela@gmail.com

eles enviam-te um exemplar à cobrança postal (15 euros, portes de correio já incluídos; e a assinatura também, eheheh).

Obrigado por tanta e tão cordial leitura.

Canzoada Assaltante