27/05/2007

Caguei e Andei – Apontamento de uma Filha-de-Putice para que Conste


Que a auto-ilusão é dos pilares da sobrevivência, nunca duvidei de.
Em domingos como o de hoje, então, é total a transparência da asserção. Uma moinha de água absolutizou o dia. Posterizada pela janela do escritório, a árvore grande abre todos os braços ao chuveiro pulverizado. Na cozinha, ferve a panela do almoço. Pus Chopin a tocar, naturalmente. Às cinco da tarde, Sporting e Belenenses disputam a final da Taça de Portugal.
Da pasta, chama-me nomes feios o romance que ando desde Novembro a ressacar. Experimento coisas tolas e inofensivas: por exemplo, tocar o teclado do computador ao andamento dos Nocturnos que ouço.
Saímos, eu e a Sofia, para tomar um café na manhã já tardia. Caí na asneira de comprar o jornal (um qualquer). Fiquei deprimido: a rafeirice dos ministros, o aniquilamento dos direitos humanos em todas as suas vertentes (laboral, existencial, todas), a chilra flama de vaidades dos jet-nomes, o portugalinho burro orgulhoso de sua mesma burrice. Deprimido. Tão cedo, não volto a lixar um euro e tal em papel que nem para enxugar os entrefolhos rectais serve.
Tenho um livro começado ontem à noite, no entanto. Em tradução portuguesa de Aníbal Fernandes e edição da Assírio & Alvim, Além, de J.-K. Huysmans, já cumpre, à página 77 em que vou, o que prometia de início: ser uma coisa muito bem escrita e muito companheira da alma. Por ser empréstimo do meu cunhado, é ao Luís que agradeço.
É com bom humor, no entanto, que lido com o mau humor próprio. Há uma maneira muito popular de o dizer bem: caguei e andei. Mesmo que, recentemente (muito recentemente) me tenham feito esta filha-de-putice: tendo sido convidado (e pago) para escrever uma dúzia (13 até, salvo erro) de canções para uma peça de teatro, escrevi as canções e ofereci-me para rever, corrigir, aumentar e melhorar as falas. A peça, do âmbito infanto-juvenil, era adaptação de um conto estrangeiro. Pois bem: do cartãozinho de convite para a estreia da peça (que, despudorada e asininamente, me apareceu ontem em casa) não consta a mínima referência à efectiva (tenho testemunhas) co-autoria que prestei. É certo que eu já andava desconfiado. Fartei-me de pedir o envio por correio electrónico da fixação dáctilo-informática final. Nada. O gajo não ma mandava. Nem mandou. Estava muito ocupado a passar pelo que não é (nem nunca foi, nem nunca será): autor único. Ou único autor. Bardamerda. Até me faz sorrir de cristalina comiseração e de pura cristandade: gosto de ajudar os pobres de espírito. O Governo não faz nem mais nem menos que este(s) gajo(s): rouba e moraliza.
Enfim, tenho Chopin e tenho Huysmans. Com um ando, com o outro cago para o “autor” daquilo que é meu.


Caramulo, tarde de 27 de Maio de 2007

10 comentários:

Paula Raposo disse...

Nem mais. De pobres de espírito está o mundo (pelo menos este país que é onde vivemos)cheio. Um abraço de domingo triste.

Daniel Abrunheiro disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Daniel Abrunheiro disse...

Obrigado, Paula. Uma palavra solidária como a tua, numa ocasião destas, é especialmente reconfortante. Quem me conhece pessoalmente, sabe que não sou de umbigos, nem de medalhas, nem de palmadinhas nas costas. Mas tenho a idade que tenho e estou farto de filhos-da-puta.
Toda a vida dei a minha escrita a quem a quis. Por zero tostões. Agora, este merda, que há anos vive da boa-fé dos outros, quis papar-me por parvo. Não papou. Há-de passar a cagar pela boca o teatro que tem feito pelo cu. Desculpa tu (desculpai todos) a rudeza. Mas para cagalhão fraco, piaçaba forte.

Anónimo disse...

Pela forma como te leio a coisa foi mesmo baixinha. Tão baixa que seria preciso cortar os pés pelo artelho para conseguir descer ao nível em que se encontra o personagem...
Amigo, um tipo assim não merece sequer a tua indignação. Já desancaste, agora enche o peito e esquece...

Anónimo disse...

desmascarado o acto, desmascare o autor. "Quem o alheio veste, na praça o despe!"
Uma hora destas, num 10 de Junho, ainda o pavão recebe uma comenda.
amirgã

Afectos disse...

Pode achar muito primário da minha parte mas dos muitos ditados neste acredito “apanha-se mais depressa um mentiroso do que um coxo”. Paciência.

Paula Sofia Luz disse...

"Não adianta apregoar a dignidade da lã a quem vive para ser tosquiado". Escreveste-o tu, amigo. Já me contaste isto. É filha-da-putice rasteira, infelizmente mais comum do que se noticia. Beijo grande, abraço maior.

Manuel da Mata disse...

Meu caro Daniel,

Já fui vítima, no defunto "DL", de coisa parecida; porém, por alguém com talento e que não precisava de me copiar e/ou de se aproveitar de trabalho colectivo.
Foi nos idos de oitenta e caí na redacção do jornal e esperei até ser recebido. Valeu a pena. Nunca mais publicou uma linha no jornal.
Toda a compreensão e solidariedade. Abraço.

Anónimo disse...

Exitem sempre uns marmanjos armados aos cucos. É de facto de lamentar o que lhe fizeram depois da sua entrega a tal trabalho. Infelizmente,e no mundo de cães em que vivemos, nem sempre é possível confiar naqueles que nos estão/são próximos.

MDC disse...

É lamentável essa confusão (pelo menos para mim que acedi a ela apenas através deste artigo e do testemunho do José Rui Martins na página da ACERT) pouco clara que corrói uma parceria artística com frutos tão deliciosos como o espectáculo "Cantos da Língua"...
Perdemos todos!

Canzoada Assaltante