02/12/2005

O Cedro e a Lua - XI - 14 de Novembro de 2005







HSC, 14 de Novembro de 2005, 2ª feira, 9h04

Estado gripal incómodo. Começou ontem, domingo, no Botulho, em casa. Saudades da gata de lá, a Agostinha, e da Benfica de cá. Um dos enfermeiros quer acabar com a vizinhança do animal. Comi uma maçã e uma laranja, a ver se vitamino a gripose. Trouxe mais material para ler. À espera de uma resposta da Suzana Ramos, da Dinalivro, para trabalho de revisão do livro técnico (cuja tarefa não terminei, entretanto, mea culpa). Porra p’rà gripe. O pequeno-almoço ainda não está servido. Tempo húmido, mas não especialmente frio. A gripe é uma coisa melancolizadora.

Mesma manhã, 10h33

Nada de outro mundo, tudo deste – um pouco de febre. De tarde, o Artistonitólogo vai falar com a doutora. Hoje, às 7h30 foi a recolha de sangue em jejum para análise. Só depois a ingestão da maçã. Ao contrário, portanto, do Velho Testamento, livro em que a Maçã antecedeu o Sangue e a Análise. Uma imbecil mulher no imbecil programa televisivo da manhã: “Um sorriso de criança é um acto de amor”. Patati patatá. Ervilha-frita-batata-bonita. Não é que seja mentira. É só tão exausto, tão banal, trivial, lateiro, cristóide, evanjófilo, o-raio-que-os-parta. Impaciência – outro fruto do estado gripal, enfim.

Mesma manhã, 11h37

Conversa na sala-de-convívio com FP, da Mealhada. Já aqui esteve antes. Primeiro, como toxi: andou fumando pó hípico. Agora, repete a estadia na qualidade de orni. Uma filha de sete anos. Ele, 33.
– A ver se recupero o equilíbrio – professa. – E se mantenho o lugar de chefe de linha de montagem – segura.
FP trabalha com homens e com vidro: tudo coisas frágeis (“ESTE LADO PARA CIMA”). “Exactamente como a vida que levamos/nos leva”, concluo eu sem falar alto e armado em filósofo. Ou em parvo, o que dá no mesmo.

Tarde de 14, 15h35

Visões Gripais

Uma japonesa entre pinheiros mansos.
Uma japonesa mansa entre cedros.
Um louco só a vida toda louco a vida toda só.
Um guincho picotado de telefone a tocar no corredor de todas as esperas.
A gripe sem vírgulas.
Recordação de uma nascente aos pés de uma montanha com um castelo na cabeça a montanha.
Caligrafia mental busca e trova papel próprio.
Tinta roxa tinta verde.
Papel no nariz água de ranho.
Ouvidos de aterragem de avião.
Estacionados carros vermelhos vivos à espera de homens e mulheres directores de condução.
A condução humana.
A humanidão serva no navio da naifa.
Loucura controladora de palavras.
Controle de palavras loucas sós a vida toda só loucas todas a vida.
A japonesa-beleza-do-líbano-cedrina.
Não poder aromar-se por causa do entupimento das árvores.
Quartos-de-hora quartos-de-lua quartos-de-pensão terço-amor meia-foda zero-futuro.
O Gripartistonitólogo gripa-se pira-se.
Tintarroxa verdetinta página 28 do manusgripto.




Noite de 14, 18h14

O vírus faz do corpo um colchão-de-água com molas de ossos. A luz do dia, os esparsos cachorros mendigos de comida hospitalar, os pássaros rápidos, o medronheiro que excresce rubis rugosos – a realidade é sentida difusamente por causa do (ou “derivadó”) cabrão do vírus.

Mesma noite, 18h29

Saindo-se a sala-de-convívio, abrem-se o terraço, o jardim (sem flores, só relva circuncisada de passeios de pedra) e uma das ruas deste labirinto mental. A esta hora já invernosa, a noite instalou já, como se para sempre, um circo de estrelas. A visão do balcão do terraço é límpida, muito pura e quase triste sem remédio(s): recorda-me (sem ser por artifício de recordação pictórico-literária, juro), O Império das Luzes, tela do grandinorme artista René Magritte. Os candeeiros, semiocultos pela folhagem, dão à luz a ilusão de frios frutos. As árvores, negras de contraste, humanizam o espectador siderado pela evidência da finitude infinita de pensar sentido (como o Outro, de outro modo). E no céu, chumbado de frígidos cúmulos, a Lua lu(t)a por mostrar-se inteira. Recolho à sala-de-convívio, por esta hora plena de adormecidos gasalhados de lã, passo ao refeitório, onde, escritor de silêncio, me sinto e sento só. Pois muito bem.

Mesma noite, 20h56

Combati a chata da gripe com mais uma laranja roubada a uma das árvores do Hospital. Colhida de noite e da parte baixa da laranjeira, apareceu-me na mão toda verde por fora. Mas, descascada e comida, revelou um coração tão citrino como generoso. Arrefecida do relento, acidula-me agora no porão gástrico de mui prazenteiro modo. Guardei para a matina próxima o kiwi da sobremesa do jantar. O meu irmão Zé Daniel bem me ensinou como combater as griposes: “Avinha-te, abifa-te e abafa-te.” Avinhar-me, não no posso. Mas abifei-me, por assim dizer, com uma bela posta de peixe grelhado e uma hidrocarbono-lambada de puré cremoso de batata mais pão. E, indo para a cama, dormirei duplamente pijamado e de meias, de modo a suar o febrão no curso e no corso da noite. Enquanto não, sigo na leitura dos Textos de Guerrilha (2ª Série) do enormigrande Luiz Pacheco e de uma novela de Joseph Conrad, Mocidade. Poderia ser pior, convenhamos. E eu convenho, que remédio.

3 comentários:

Anónimo disse...

Não há maneira de olhar para isto e de te ler como se fosses humano, Daniel (denial?). Não há. Escorrego tanto para a beleza que me deixas sem ânimo para acreditar que és tão homem quanto eu e os outros todos alguma vez seremos. É o diabo. Depois, levanto-me porque afinal é dia e não posso passar o dia de cama, na engonha.

Anónimo disse...

Ele é demasiado humano.

Anónimo disse...

pois. é o que eu digo: são horas...

Canzoada Assaltante