1. Copiosa Imanência ou Por Assim Dizer
Terça-feira, 22 de Outubro de 2019
Nunca gostei de o meu corpo ser tão
meu contemporâneo. A idade que perfaço, não perfaz o que penso – muito menos o
que, apesar dela (e até contra ela), dela penso. Ali, a luz impondo a transparência
rectangular da porta de vidro: ou seja: a luz apesar da janela, a luz que fora
de mim reitera um mundo a que a idade, mais e mais, me faz despertencer.
Sim, tenho saído pouquíssimo. Esta casa
vai dando para males que não faço, bens que não mando vir, lembranças que de
mim só necessitam papel & lápis, tinta por vezes. Já agora, isto também: espécie
de copiosa imanência aufiro sempre que o que era sempre se me faz nunca. Digo:
nomes passarinhando pelo céu domesticado do meu tecto, datas solenes.
Digo mesmo: nomes solenes, este
tecto sem data – meus brinquedos mentais, inócuos & mortais, ou mortíferos,
ou vivenciais, dá tudo (n)o mesmo. Pode parecer-Vos difícil, ilegível,
irrisório até, quanto aqui, assim, agora, vou pondo – mas calma: é facílimo, é legível,
é de facto irrisório, disso Vos não demovo. Enfim & todavia: se não peço,
posso dar; se nada mendigo, tudo posso obolar.
E eu vou-me dando. Dand’andando sem
daqui sair. O corpo, para cá dos cortinados longos, digere, rumorosamente às
vezes, a sua (dele mais que minha) condição de animal exilado-em-mente. Um exemplo
elegante: ontem, entardenoitecendo a casa como se fôra uma árvore, deu-me para
ficar ouvindo uma mulher que sei morta. Era Agustina.
Agustina (sim, a escritora) dizendo
coisas da família dela, pai, mãe; de casas dela, Amarante ou Porto, Régua ou
Coimbra, não sei bem, não fixei. Dizem-me-a morta, no que decerto me não mentem
– mas achei-a viva, vivaça até, eterna porque filmada. Ou bem mais bem: por ter
escrito livros, muitos livros, pertencendo-lhes agora pela aliança inconsútil que
a tipografia impõe ao futuro da morte.
Lúdico, lúcido, mais ermo que
enfermo – felizmente. Não sei já se ontem se anteontem daqui mesmo vi chovendo
dalém. Porta & janela ao tempo mesmo, vidro entre o meu corpo enxuto &
o acontecimento pluvial dessa hora que nem V. nem eu podemos reter. Sei que era
bonito, muito bonito: digo: aquele segmento de Outubro fazendo de Deus, ou
seja: dando-no-la – e a cântaros.
Já vêdes que pouco me suficienta –
e até sobra. Nada disto é lamentação. O que é, então? É papel & lápis,
tinta por vezes. O céu desta parte da Península aparecia-nos inoxidável como
ali a banca da cozinha. Hoje, menos. Houve uma luz mais especiosa, de
amarelos-açafrões mais flagrantes com dedadas verdeazulíneas de porcelana
pertinente. Pelo menos, eu sei, nem Vos pergunto se isto é seu tanto tonto – ou
sou.
Ainda bem que, supra, V. referi
Outubro. Ainda bem, digo, por ter a ver com aquilo, supra também, de me
desgostar a obstinada colagem do meu corpo à minha idade – e da minha idade à
minha mente. Explicação ligeira: desde menino que estou – ou sou – em Outubro. Isto
que é – é mesmo isto, é assim mesmo. Mais & mais envelheço? Muito bem: mais
& mais acho cama em caduco folhedo.
Estas folhas mesmo, por mor
exemplo: a lápis como, por vezes, a tinta, não pertencem à brutalidade
incandescente destes verões últimos, destes estios automáticos de dez meses ao
ano com que brindamos ao novo – mas derradeiro – milénio. Deteriorámos o céu
& apodrecemos a terra, não foi? Foi. Agora, fodamo-nos todos à força toda. É por
isso que não saio senão pouquíssimo – e só no Outubro.
Certa pessoa antigamente minha
amiga gostava muito de dar-se a vomitórios-posta-de-pescada tipo truísmos moralóides.
Sabeis bem, senão a quem, a que me refiro: aqui-saùdinha, ali-vícios,
ali-caminhadas, aqui-cigarradas, acolá-copos, acolém-só-àguinha. Digo-a “antigamente
minha amiga” por ter morrido – não eu mas ela, essa pessoa tão certinha, mas
tão certinha, que até ao cancro se deu, e cedeu, a horas.
Ainda bem também que já V. referi a
tal senhora-de-tantos-títulos, Agustina. Fez-me teleportar a ideia até os (há
muito) idos dentre 1981-82, idade lectiva em que era, aliás felizmente, obrigatória
a leitura curricular de A Sibila. A senhora
professora desse remo(r)to 12.º Ano podia não saber (e é que não, não sabia)
tanto da literária poda quanto a do 11.º - mas soube levar-me(-nos) à fonte
agustiniano-sibilante por claro & fresco caminho.
Uns poucos anos depois, em 1986, e
por causa de Agustina se ter dado a mandatária nacional da candidatura de
Freitas (também morto agora, há uns poucos dias que se finou, coitado) a
presidente republicano cá da parvónia, o PC caiu na precipitação, ou até
fantochada, ou caricata intolerância, ou burlesca bonifratice, ou mocorongo
espalhafato, de mandar devolver os livros à autora. Eu não devolvi o meu
exemplar d’A Sibila. Era e é meu. Rábulas
que tais, (já) não.
Não devolvi o livro mas votei no
Soares à segunda-volta porque Cunhal mo-no-lo disse para. Arrependi-me muito na
ressaca de o ter feito. Enfim, turvas-águas-afinal-passadas. O Bochechas também já lá mora, ninguém cá
se demora. Livro que me chegue às unhas, livro meu para sempre – mesmo que mau,
ou falso, ou aparranado, ou gebo, ou coiso. Meu uma vez, meu para sempre. Assim
me fossem outros bens que a vida (também) tem. Ou que dizem que, por assim dizer.
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