Em modo de
pré-viagem
Estou
em antemão de viagem, cujo montante temporal desconheço mas de cujo benefício
vos farei relato aqui mesmo, a ocasião vinda. Isto quer dizer que os pardais residenciais
e a pomba solitária da Praça Nova vão ter de desenrascar-se sem mim por uns
tempos, quebrada a nossa rotina diária do bocadito de pão & da mãozita de
arroz. Não é de extensa geografia, a jornada a que me proponho. A partir de um
ou dois marcos geodésicos, traçarei panorama de um meio-século laboral, humano
portanto. Mas a seu tempo esse Tempo. Para já e por enquanto, viajo de outra
maneira. A outra maneira é, sumariamente embora, recordando certa viagem já
muito pretérita que reservou poltrona à lareira da minha lembrança.
No
Outono de 2002, fui a Bruxelas. O que me lá levava, foi feito sem pressas nem
demora, sobrando-me tempo para caminhar sozinho com o lápis do costume por
companheiro. Tinham-me recomendado certo incenso de certa loja na Chaussée
d’Ixelles. Acatei o conselho e aviei a encomenda. Não era difícil: fui pela Rue
du Prince Royal, claro, subi a calçada não agreste (estava bom tempo, o sol era
fresco, adequada a minha roupa, boas as botas e bem atacadas de cordão grosso),
muni-me do incenso. Decidi então, como é evidente, procurar um Café de
portugueses. Fazia-me falta o binómio bica-bagaço de cuja imprescindibilidade
quotidiana os estranjas, Belgas ou
não, sabem nada. Encontrei o que desejava no n.º 6 da Rue Lesbroussart: o
brioso Café Braga. Adentrei o estabelecimento e, ao balcão, soltei um quase
estentóreo “– Atão munto boas tardes ós
presentes.” Correu muito bem, como só podia. Tomei quatro chávenas lusíadas
à maneirex, nada que ver com a
água-de-lavar-cafeteiras a que os Belgas chamam café. Deixei-me por ali estar
coisa de hora & meia a parlapiar com os circunstantes sobre benficas-sportings-e-coiso.
Só havia um casalito indígena namorando em bárbara língua, o resto era tudo portuga, mormente minhotos. Um rapaz já
descriado, que era de Monção (recordo isto como se estivesse sendo agora),
ofereceu-me um sorriso manhoso do maior entendimento tácito. Devolvi o sorriso,
mas só já na rua percebi o porquê da peculiar simpatia: o magano interpretara a
fragrância da embalagem de incenso como sinal de substância para fumar às
escondidas, daquele material que ou faz rir ou dá fome ou as duas coisas. Regressei
ao hotel sem maior novidade – e dois
dias depois ao nosso incomparável, egrégio & ínclito torrão pátrio.
Antes
da Bélgica, tinha ido a Cabo Verde. Faz Julho próximo vinte anos. Foi também
por trabalho, que na altura me não faltava mas hoje não hei nem há. Hei-de
talvez cronicar ainda algumas linhas sobre essa demora de três semanas na
Cidade da Praia, não agora. Também já fui a Vigo, a Sevilha e a Madrid. Não
importa, agora.
Agora,
estou fazendo a mala (pequena) para a viagem de sexta-feira próxima. Sou
maníaco de indispensáveis, tendo portanto aprestado já no bornal o seguinte
(enquanto enumero, colmato falhas): o retrato de casamento dos meus Pais
(original de 25 de Julho de 1943), os dez volumes de Portugal Século XX – Crónica em Imagens de Joaquim Vieira et alii para o Círculo de Leitores, um
frasco de maçãs cozidas em calda de açúcar, um par sobresselente de atacadores
das botas (para não arrastar a marcha em terra alheia), uma carta manuscrita de
recomendação da minha pessoa dirigida ao senhor presidente da Misericórdia
local (mas a utilizar só em caso de agonia súbita tipo falta de carcanhóis para o regresso), gravata
para exibição na Assembleia Municipal (mais o bigode postiço para me não
associarem aos gajos do jornal), papelucho com rol de presentes endógenos
(tóxicos e inócuos) a adquirir em lojas certificadas, a camisa branca mais a
outra que é castanha (mas só usar esta com camisola por ter um rasgão diagonal
à altura do fígado), pão & arroz para a passarada de lá – e o lápis do costume.
A
ver se na lista me não esquece de apontar o incenso, que o belga já se me acabou
há uma irremediável eternidade. Isso – e voltar à primeira oportunidade, que a
mulher pode habituar-se ao sossego, e depois, posto e vivendo na rua, ainda me
arriscar a ser abraçado pelo senhor Professor Presidente Marcelo, de lágrimas
os dois qual par de Madalenas tipo andava-a-desgraçadinha-no-gamanço.
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