À vista armada
(crónica a olho nu)
Agosto
passado, voltei a perder os óculos. Até poder usar uns novos, o mundo
volveu-se-me ilegível. Ilegível e ainda mais ininteligível do que de costume.
Foram maus dias. Era como, sem ser peixe, habitar um aquário. Na rua, as
pessoas (a)pareciam-me como espectros glaucos, o ar ardendo em aura à volta de
nódoas escuras que eram as cabeças – um pouco à maneira do povo dos sonhos:
adumbrações exiladas de qualquer esperança de nitidez. Da vizinha do
quarto-andar, o gato tomou ameaçador & furtivo aparato de tigre. Foi mau.
Livros, nem pensar. Internet, adeus. A minha assinatura em papel do noss’O
RIBATEJO só trazia fotografias molhadas sob a tutela escarlate do título. O
pior passou-se com a minha própria mulher.
Com
a minha própria mulher, passou-se que, como eu não a distinguia das outras,
comecei a chamar-lhe nomes que ela não tem nem merece. Conseguintemente, passei
a dormir exilado na saleta de passar a roupa a ferro. Convivi com meias,
pijamas, bonés & camisas que eu já não sabia que tinha ainda. A minha
cabeceira foi uma caixa de sapatos sem sapatos mas plena de identidades (e de
oportunidades) perdidas. Explico-me: era a caixa de cartões caídos (como eu
nesta vida tantas vezes, hélas!) em
inutilidade anacrónica por desuso. Revi então as minhas mocidades à-la-minuta:
o
meu cartão de xadrezista aos 12 anos pela Académica;
aos
13, o meu passe de iniciado pelo futebol do União;
a
quadrícula de director-auxiliar da Tuna, aos 16;
a
cédula de pescador fluvial, que acabei por renegar ao descobrir que aquilo era,
afinal, uma licença-para-matar;
o
meu primeiro BI, amarelidão de documento autenticador mas falsário de uma
filiação que por todo o lado, todos os dias & a toda a hora, com ou sem
óculos, procuro entre os vivos mas não encontro: o meu Pai, a minha Mãe;
convenientemente
roído, o meu certificado de sócio-fundador da Federação Portuguesa de
Onicofagia;
o
diploma-de-mérito da Sociedade Nacional de Fermentadas & Destiladas;
e
ainda, também e finalmente, a certidão de utente da Sopa dos Pobres que ficava
ali ao pé da Igreja do Deus-me-Livre.
Chegado
o Setembro, a minha Graça condoeu-se. Era muito dia de eu desandar por este
triste mundo tiquetaqueando as calçadas de bengalinha extensível de alumínio às
risquinhas vermelhas-e-brancas com um cão também cego ao joelho. Comprou-me
umas cangalhas novas e mais caras do que os olhos da cara. Lentes progressivas
do-perto-ao-longe, muito fixolas, de finas hastes que configuram, no meu rosto
de pergaminho, uma iluminura de artista-frade-&-copista. É com elas armadas
que V. escrevo.
Olhai
ali, por maravilha: beira-rio, os choupos translúcidos filtrafarfalhando a doce
luz do novel Outubro. Vêde comigo, além: um maduro de calções pedalando a
reforma gorda a cavalo da BTTcicleta de três mil euros, no mínimo três milenas
do belo. Assisti Vós ao que ora assisto: pespontando a azul-ferrete a qualidade
diáfana da aragem da manhã, uma rapariga clara como a transparência do mais lúcido
acetato.
E
ainda: o solícito senhor carteiro do meu bairro, portador desta mesma edição do
noss’O RIBATEJO, miraculosamente & de novo repleto de palavras que me
devolvem uma identidade chamada pertença, esse tipo de pertença ao meu Leitor
& ao meu Jornal a partir da qual nem preciso de óculos, por ser, como
sempre tem sido & há-de ser sempre, uma coisa de olhos nos olhos.
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