Escrever nas folgas
Um
amigo meu é historiador amador. Comete monografias. Sabe coisas impensáveis que
as mais das vezes resultam genealógicas. Ou pior. Uma inscrição de fontanário
extasia-o como a mim só me acontece com, com quê?, talvez c’a Sophia Loren aqui
há uns oitenta anitos. Da I República para trás e para os lados todos,
cimabaixestiborbombordo, sabe tudo – menos o que será desta de agora.
Acontece
que ontem, sob a morrinha persistente que acinzentava mais o dia do que à nossa
vista a passagem de uma viúva sincera, apanhei-o esmifrado de nervos &
sudorífero de raivas. Indaguei:
– Atão, pá? Tás
c’umas beiças qu’inté parece que te caiu um músculo a dormir, home’! Qu’é que
foi? Morreu-te a vizinha de baixo ou debaixo?
Ele
desganiu-se-me com a explicação:
– Rafeiro, fui ao
Arquivo Municipal ver se catava uma data infalível e olha, népias.
Tentei
ajudar, claro. (Eu sou assim, ajudante. Nunca hei-de chegar a chefe por causa de
ser assim, assim bom, assim porreirinho, assim amigalhaço, assim sempre-de-ajudar,
assim mentiroso.)
– Que filão é que
escavaste?
E
ele:
–
Os Anais, claro. Mas aquilo era só folgas.
E
eu:
–
Pá, isso é mau. Anais com folgas… E eram
todos de trânsito só de-dentro-p’a-fora?
E
ele:
–
Goza, meu ganda-marreco-das-orelhas, goza
pr’aí. Era coisa importante, pá, coisa importantezinha, mat’rial necessário ó
Pobo, pá, necessário cumò pão pà boca, cumò pão pà boca, pá.
Solidarizei-me.
Ofereci-lhe que beber. (Só beber. É de lei que, co’ comer & co’ fumar &
co’ aquele resto que toda a gente sabe, cada um paga o seu. E o dever acima de
tudo, como na tropa.) Fomos ao Ramiro Tira-Linhas a modos que esvurmar uma tal
pomada que ele lá tem, mas tal, que os médicos só não a receitam para o ranger
das artroses e para as borrachas da figadeira porque isto de médicos e
laboratórios, pá, isto de médicos e laboratórios é tudo Roque-da-Amiga &
Amiga-do-Roque. É-é, mas-é-qu’é mesm’assim. Entonces,
depois de umas pucheiritas lá mudámos para o cântaro, que sempre fica mais em
conta.
Na
brevidade que a vida é, por contar menos um dia do que o carnaval, a
pajens-tantos intentei cognoscer (no mínimo, cognoscer, que eu ainda fiz o quinto-ano antigo), quer’eu dizer,
apurar o âmbito & o intuito das anais escavações do meu amigo.
Ele
recognosceu-me ist’assim:
–
Tinha a ver com a data exacta, ali
exactinha preto-no-branco, da última vez em que a Câmbra interveio, pá, sei lá,
nos problemas. Os problemas, tás-a-ver?, as cenas que dão mau nome aqui à
parvónia, pá, aqui à parvónia, pá, mau nome, tás-a-ver?
E
eu:
–
Tar-a-ver-tou. Mas assim tipo alguma zona
em particular, sei lá, tipo ali nas Trigosas?
E
o sacana do gajo a esgalhar-se todo de risota & a cuspinhar farelo de
pevides pa’ todo o lado, o sacana do gajo assim na mouche qu’eu às vezes c’a pomada fico:
–
Trigosas? Trigosas? Ó meu, bebe cérélác
sem grumos cuspidos, meu! Eles lá nas Trigosas não são de folgas, meu. Se
precisam, não pedem nem esperam. Fazem. Fazem ali feitinho. Entre todos. Para
todos. E pluribus unum, carago! Mete lá esta nos teus anais, anda.
E
eu meti. Tanto meti, qu’inté escrevi esta de pé e tudo.
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