Três de Janeiro,
por exemplo
A
3 de Janeiro de 1903, Alois Hitler, pai do Adolf, morreu. O mal estava já feito,
todavia. Klara, a mulher dele, foi definitivamente roída pelo cancro em 1907 –
mas o mal não apenas teimava feito como crescia. Sobre a morte desse obscuro
funcionário público austríaco, o mesmo há a reter que da sua vida: cinza uma
como cinza outra. A coisa passou-se.
Exactamente
22 anos depois, eram suprimidos em Itália os partidos políticos que queriam ser
oposição à meteórica trajectória ascendente de um tolo perigoso chamado Benito.
(Nessa precisa data de 3/I/1925, contava a senhora minha Mãe 68 dias de vida –
e era decerto feliz, pois que então purificada pelo esquecimento do futuro.)
O
futuro é que se não esqueceu do seu destino demolidor. Assim foi pois que, num
terceiro dia januário também, mas o de 1935, se assiste em Coimbra a uma cena causadora
de colectiva tristeza. Tem a ver com demolição & destino: por decisão da
Câmara Municipal, é demolida a altaneira e histórica Torre de Santa Cruz, em
frente ao formoso Jardim da Manga. A construção ameaçava iminente &
eminente derrocada. Tinha de um lado o Celeiro dos frades crúzios (onde
funciona hoje em dia a esquadra da PSP) e do outro a Enfermaria, que foi depois
residência do senhor Prior e biblioteca até se tornar no que é hoje: a Escola
Secundária de Jaime Cortesão.
Treze
anos exactos se esfumam. Não estamos já em Coimbra lacrimejando de impotência à
face do sacro entulho. É ora em Lisboa que estamos. Por magia, quantos são
hoje? 3 de Janeiro. O ano é 1948. A noite promete: há fadistagem no Café Luso, como de costume, mas este
serão é especial por ser o da consagração de um fadista chamado Alfredo. Desde
outro Janeiro (o de 1941) que o Luso
já não é na Avenida da Liberdade (onde nascera em 1927), trasladado que foi
para as antigas adegas e cocheiras do Palácio do Largo de São Roque, ali à
Travessa da Queimada (8-A, telefone 32 889). Chama-se agora Cervejaria Luso. Há menos de três anos
que o filho do tal Alois foi ter com o pai. Há menos de três anos que o Benito
foi pendurado pelas patas como uma carcaça de açougue. Os ventos da
democratização que por (alguma) Europa grassam, não desgraçam porém a cinzenta
nau ibérica, cujos timoneiros se chamam Franco e Salazar. Muitos Janeiros
hão-de arder a frio até que seja Abril. Mas hão-de.
Ainda
assim, e meros doze anos passados sobre a boémia consagratória do fadista
Marceneiro, a estagnação estadonovista é furiosamente sacudida de cabo a rabo.
3/I/1960 – de uma das mais perversas prisões de alta-segurança da Ditadura, o
Forte de Peniche (que nos nossos tristes presentes dias os patarecos da
dinheirama fácil & rápida parece quererem transformar em amnésica
hotelaria), chega notícia de sensação: fugiram uns gajos que ali estavam presos
“por seu livre pensamento” (cf. fado Abandono, vulgo Fado Peniche, pela divina Amália). Eram eles: Joaquim Gomes, Carlos
Costa, Jaime Serra, Francisco Miguel, Rogério de Carvalho, Francisco Martino
Rodrigues & um tal Álvaro Barreirinhas Cunhal. A intrépida evasão roça a
ironia histórica. Porquê? Por se dar precisamente
dez anos & um dia depois da morte de Militão Ribeiro, acontecida a 2 de
Janeiro de 1950 na Penitenciária de Lisboa, supostamente ao cabo da greve de
fome que a cabo levava contra a falta de assistência médica. Militão e Cunhal
haviam sido presos conjuntamente pela PIDE em 1949. Nunca mais seriam presos:
Militão, pela absoluta libertação chamada Morte; Cunhal, pela absoluta
liberdade chamada Vida.
De
modo que: 1903, 1925, 1935, 1948, 1960. Tudo depois de Cristo. E a 3 de Janeiro
tudo. Queira todavia o meu Leitor tomar nota ainda de uma outra efeméride. A
próxima edição deste Jornal não há-de esperar pelo 3 de Janeiro do ano que
há-de vir. Pois não. A próxima acontece a 27 de Outubro.
Ora,
a 27 de Outubro nasceu a senhora minha Mãe.
Mas
aí a História, porque futura, porque purificada, porque nunca esquecida, aí a
História já é outra.
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