Palavras
cruzadas
“Uma
vida em segunda-mão não tenta ninguém.”
Di-lo Katharina von Bülow em A Alemanha entre Pais e Filhos, tradução
que as Edições Cotovia publicaram em
1988 entre e para nós.
Na banca ao lado daquela miniFeira do
Livro, por os idos do Março passado, encontrei também o José Cardoso Pires de Dispersos 1 – Literatura, que a Dom Quixote nos propôs em Maio de 2005. A
páginas 255 desse caderno póstumo, recolho um ditado bretão que o Autor de O Delfim achou por bem nele incluir: “Até aos vinte anos, o homem tem a cara que
Deus lhe deu, daí em diante aquela que merece.”
Diz então Katharina:
– Zé,
olha que ‘uma vida com sentido não é a sobrevivência pura e simples.
Acomodar-se às coisas é renunciar.’
E ele assim para ela:
– A
quem o dizes, Katy, a quem o dizes! ‘O repouso do guerreiro mata o guerreiro, é
essa a sua ingenuidade.’ Mas olha que ‘a felicidade individual requer
planificações políticas amplas e ambiciosas. O burocrata, o carreirista da
governação ou o legislador provinciano têm pavor aos projectos vastos’.
E ela assim para ele:
– Verdade,
meu amigo. ‘O país só tem sentido se lá possuirmos uma casa. E uma casa só tem
sentido se abrigar uma família.’
Zé:
– Katy,
a propósito destas coisas inteligentes que aqui cruzamos para gáudio de um cronistazito
de comarca, ouviste dizer que pertinho de aqui onde estamos, ali para riba do
Tejo, lixaram o Melão?
Katy:
– Não
me digas! O Tó? Fizeram-lhe isso?
Zé:
– Fizeram.
Katy:
– Trinta
e um, então.
Zé:
– 31?
Isso é nome de fadinho, cá pelas minhas bandas. Mas q’ais 31?
Katy:
– O
Tó mais os 30 que a ViverSantarém vai despedir.
Zé:
– Essa
’tá boazinha, sim senhora. A menina ajeita-se a fazer descontas, já vi.
Katy:
– Que
fará ele agora?
Zé:
– Com
aquele nome, sempre é gajo para arranjar emprego em Almeirim.
Katy:
– Não
sejas mauzinho. Estávamos a conversar tão bem lá em cima, com datas de edição e
páginas e tudo.
Zé:
– Pronto,
a graçola sempre nos serve de escape ao facto de a política ser a ‘manobra do
dia-a-dia, solução a reboque dos acontecimentos, que é, em termos de
administração, o caminho tradicional dos providencialistas e dos caciques
domésticos’.
Katy:
– ‘Ontem
pertencíamos a uma nação, hoje somos caça.’ Acho mesmo isto, Zé: ‘Nós somos
caça, acasos, heranças absurdas.’
Zé:
– Isso
está bem posto, rapariga. ‘O homem contemporâneo que se julga integrado numa
idade de progresso (…), pobre dele, vive paredes-meias com a contradição
elementar e o anacronismo.’ É como tu mesma disseste, menina: ‘De eleitores
cobardes, democratas dóceis’…
Katy:
– Sabes
tu? Tenho por vezes ‘a impressão de andar ao lado dos meus passos’…
Zé:
– Também
me acontecia muito, mas agora menos, que estou morto.
Katy:
– Não
de todo, Zé, de todo não: alguém nos faz ’inda falar. Nos faz ainda ser,
portanto.
Zé:
– Valha-nos
isso. Somos o que merecemos – como os bretões. E já não temos vinte anos.
Katy:
– Tudo
bem, desde que vivamos em primeira-mão.
Zé:
– Não
digas isso assim, que rima com Melão.
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