Fala
o escriba
Desde princípios de Abril passado que ando
a manuscrever duas biografias. Nenhum dos trabalhos tem como alvo alguma
celebridade. Foi uma Editora amiga (minha amiga) a encomendar-mas. Respondi
logo que sim, que as fazia, claro, que o vento é muito e o provento é pouco.
Em ambos os casos, os meus biografados
(homens ambos) são aquilo a que vulgarmente se chama gente comum. Única, portanto. Não é paradoxo: para mim, é no
ordinário que o extraordinário vinga. Para mim, são os anónimos que substanciam
as eras, as civilizações, o que por algum tempo fica. Alguém arrastou, içou e
assentou aqueles calhaus que ainda hoje articulam as Grandes Pirâmides – e não
estou em crer que tenha sido o Faraó.
Cada um por si, estes dois senhores abordaram
a tal Editora. Que queriam, o mais dignamente aliás, deixar de si alguma coisa
em letra impressa. Um rasto. Um resto. Um rosto. Uma vida que se lesse tal como
eles quereriam saber escrevê-la. O Editor e eles numeraram e enumeraram os
custos e os emolumentos da coisa. Chegaram a acordo. Daí, tocou o meu telefone.
E há mês e meio que ando na coisa.
Cá ando. Visito-lhes as infâncias,
devasso-lhes as casas, miro-lhes as fotografias amareladas pelo soro das
décadas, falo-lhes com as esposas, os filhos, os amigos, os vizinhos, os
profissionais relativos. Com as amantes, não: dizem que as não têm, que nunca
as tiveram – isto do que fica escrito é de muito respeitinho, de muita
prudênciazinha. Tenho alguma pena: sempre outra pimenta me perfumaria o sal da
bionarrativa, sempre outro talozinho de coentro viria ao mordiscar do dente.
Paciência: pode ser que ainda me apareça alguma marquesa decrépita que queira,
em baskerville old face tamanho 12, e
aos olhos do mundo, desempoeirar a alcova dos seus muitos anos.
Em Out
of Africa (África Minha, na
tradução portuguesa), há páginas maravilhosas sobre isso de a vida ser
definitivamente real e realmente maravilhosa quando passada a escrito. A também
maravilhosa Karen Blixen, que as escreveu, arruma assim o episódio consagrador da
maravilha do indígena que, havendo merecido da mulher branca dona da fazenda
uma carta de identidade & favor, logrou a eternidade em vida:
“A
cada leitura o seu rosto assumia a mesma expressão de profundo triunfo
religioso e após a leitura alisava cuidadosamente o papel, dobrava-o e metia-o
no saco. A importância do relato não diminuiu, antes aumentou com o tempo, como
se para Jogona a maior maravilha a seu respeito fosse o facto de não mudar. O
passado, que fora tão difícil de trazer à memória e que provavelmente parecia
modificar-se cada vez que ele pensava nele, havia sido captado, conquistado e
imobilizado ali, perante os seus olhos. Tinha-se transformado em História, com
o que perdera todo o perigo de variação e de sujeição às sombras da mudança.”
Ao cabo do corrente Maio, devo ter
completado a primeira; lá para Setembro, a outra. Mas o que eu não enjeitaria
mesmo, juro, seria, de uma assentada mas sem perder o cunho individualíssimo de
cada caso e de cada casa, escrever as trinta biografias dos trabalhadores que a
Viver Santarém se prepara para pôr na rua. Essas trinta e – no reverso de cada
uma, ao gosto da antítese – as não-biografias dos nascimentos que a “reorganização dos hospitais” do
distrito de Santarém vem proibir.
Não me parece, no entanto, que eu venha,
nem a escrever tais linhas, nem a ficar célebre por elas.
É o que faz ser escriba por conta do Faraó.
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