Fala o Pardal Oleiro
A idade é uma fábrica de paradoxos afinal simples. Com os
anos, (a)parecem cada vez mais recentes as coisas mais antigas, na exacta
proporção que inverte em menos frescos os episódios acabados de conhecer a luz.
O nosso senhor Magalhães de agora é o meu senhor Elói de
há quarenta anos: a idade deles é a mesma, mesmo é o copito de tinto à mesma
hora certa de cada dia incerto, mesmas as opiniões lacónicas e rezingonas de
ambos a propósito do que aconteceu àquele que tinha a sucateira no quintal dos
Lourenços.
À cristalaria da infância, opus (opus de opor, mas também
de obra), na soma irrefragável e
inconsútil de tantos entretantos, uma silveira de emaranhamentos: a primeira
gilete púbere contra a barba de ontem, por essas praias as ninfetas adolescentes
reiterando a universalidade das minhas Filhas – e a certeza concreta e
inabalável de cada Pardal ser Um, Uno e Único – isto é, Todos: como a Morte.
Não é que essa vã guarda chamada Actualidade se me escape,
toda de todo ou/ao menos. Não. É outra coisa, que esta é: as lembranças
ressoam-me cavas porque a memória me adquiriu uma tonalidade de cisterna. E é
dela que me sirvo para, ante as notícias que reportam o flagelo das guerras e
das rebeliões e das religiões e das manifestações silêncio-ciliciadas pelos
mastins-de-choque, reconhecer sem hesitação nem dúvida o abismo de diferença
que há entre os mortos que foram homens e os homens que foram mortos.
Pelo vestuário pingão e pelo olhar rórido com que por ruas
& praças & beira-rio vou manchando o papel do ar até que tudo seja o
mais filactério pergaminho – não me seria possível a evasão da condição de um
ser tocado à nascença pela vocação d’outono-inverno. Passado e Presente, com os
anos que os cozem até à mútua fusão, acabaram engendrando e expondo, para meu
consumo-da-casa e meu caso, a natureza siamesa da Bela e do Senão.
O que hoje foi amanhã, ontem viria a ser. Na estrumeira
política corrente, os pagantes são oleiros – e bandoleiros, os
(auto)governantes. Vale-me ser este o
Verão de 1970, vale-me repartir já então com as minhas Nascituras, no areal
ébrio de ouro à sombra da Bola Nívea, o balde, a pá, o moinho e os ciclistas a
dados.
Como aliás me vale também não ter chegado jamais a ser
aquele que, por caridade dos Lourenços, arranjou pátio onde montar a oficina
para acumular a irreparável sucata do Tempo, isso que só os Pardais é que.
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