Trinta e cinco cêntimos de prosa
Viseu, segunda-feira, fim da manhã. Fui pela Rua Formosa, virei para a Direita. Vivi, entre pessoas que passavam, a evidência de todos sermos ambulatórias lápides: e anjos desasados. Não foi uma sensação mórbida, não foi um arroubo lírico. Foi uma evidência solar. As pessoas: para cá e para lá, seus rostos historiando as vidas que passam na rua que fica, no tempo que passa.
Entrei no Café Isabelinha, comoveu-me a visão, numa estante de vidro, de embalagens de bolacha-baunilha: a trinta e cinco cêntimos, o preço da minha infância. A três mesas, quatro anjos: uma mulher não jovem, três gajos de trintas. Cervejas e copos de branco. Estive perto deles até o fim deste parágrafo.
Voltei a passar junto à casa onde nasceu (1864) e morreu (1896) uma das mais amadas vozes do fado de Coimbra: Augusto Hilário. Dada a manhã, branca e lavada como um azulejo, experimentei polir a luz: bafejei-a, passei-lhe um pano mental, brilhou como um cristal. Antes, do lado da sombra, tinha passado rente a um dos mais representativos exemplares da fauna local: um padre. Encoleirado de branco, andava de saco de compras. Passei por ele, temendo pela minha alma.
Segui, lapidar e angelizado, pelo lado do sol até que o xadrez da arquitectura me permitiu novas quadras de sombra-luz. O meu coração pulsava num sossego de paço episcopal em dia de bispo fora. Vi uma rapariga dando a mão à mãe deficiente, que me olhou desse detrás tão remoto da loucura. Em que dimensão existimos, quando somos vistos passando na rua? É tudo em campo santo: hilários datados a prazo entre pedras: as ruas do xadrez calçadas de pequeninos paralelipípedos de bolacha-baunilha numa estante de cristal brilhante como a minha infância a trinta e cinco cêntimos.
2 comentários:
Excelente, como sempre! Dá gosto ler-te!
Um abraço!
Lida e apreciada. Abraço
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