Iniciei hoje, 25 de Maio de 2007, uma crónica semanal na última página de um dos melhores jornais regionais do País: O Ribatejo (www.oribatejo.pt). Muito me honrou aceitar o convite do director do semanário, Joaquim Duarte. A coluna tem por título regular Rosário Breve. Aqui vai a primeira.
Ruínas e Anjos
Há um ano (com seus dias e suas noites) que moro numa vila tão despovoada como uma cama de viúva séria.
Os habitantes são muito poucos, do que resulta terem-se tornado uma espécie de anjos ambulatórios. É uma gente, por assim dizer, ornitológica: não é raro surpreender um ou dois em cima de alguma árvore ou do ridículo sinal de estacionamento proibido.
Mas sou feliz. Sou. As noites são mais populosas do que os dias. A demografia nocturna contém a mansidão vigilante dos mortos, facto que, no mínimo, duplica o recenseamento local. Devo acrescentar que é uma vila de montanha. Até os habitantes da multitudinária lezíria admitem que uma montanha é o contrário da vida: por ser sempre a subir.
Durante meio século, a vila floresceu à conta da tuberculose. A estância sanatorial chegou a contar dezoito internatos, cento e tal médicos, mil e tal doentes. Por meados da década de 70 do século passado, a tuberculose acabou e a vila também. Um a um, os sanatórios foram abandonados.
Tenho por costume penetrar essas ruínas ominosas. Derivo em silêncio na espessura estancada desses aquários do Tempo: faço de peixe.
Faço de peixe, pelo que, quando regresso a casa, a gata me olha com um suspeito carinho alimentar. Se chove, vou à varanda e assisto à chegada ubíqua e diagonal da água. O parque da vila, de árvores negras de tão verdes, suporta a chuva com uma resignação pessoal.
O mais certo é que, nesta ou naquela árvore, esteja algum anjo de asas encharcadas e quase tão feliz quanto eu.
4 comentários:
Boa, boa!
Parabéns ao Daniel e ao Joaquim Duarte do "Jornal do Ribatejo"!... O Daniel é uma das pessoas que melhor escreve em Portugal, i. é, é um dos grandes poetas contemporâneos portugueses!
Sei do que falo!
Pois, excelente.
Uma delícia de texto esse... nos sentimos lá, na vila... :)
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