(Se alguma vez
incorrer na insensatez
de publicar um livro de poesia,
esta
Carta do Armistício
poderá prefaciar
essas páginas insensatas)
O mais que faço – é ver(s)ificar a correlação dos elementos, a força das leis presidentes: a Vida & a Morte & o Tempo.
Só faço isso. Nada mais há que fazer.
Sirvo-me da poesia – sabendo que a sirvo. Não se trata de um sacerdócio. Não se trata de um martírio. Não é missão nem submissão. É uma aquiescência. Um beneplácito. E uma resignação, também.
Frequento pastelarias e casas de bifanas, cuja universalidade me é tão evidente quão a do parque, o parque construído de árvores, pássaros e peixes vermelhos (todos partilham a água, peixes, pássaros e árvores). Os internados do Lar não frequentam o parque. Preferem a pastelaria, a mesma que em minutos abandonarei para vir, aqui, escrever-vos esta carta. Enquanto não, ali, um homem lavado ingere um quartilho de água mineral em pleno armistício: o sábado.
Algo que me acode com grande ligeireza é a autoridade da desimportância. Terraplanada pela igual sucessão, a Coisa não tem importância. Assim é.
É como quando apanho o comboio. Fazendo-o, matriculo-me na dimensão paralela dos viajantes, esses seres-almas que não são corpo enquanto a viagem dura, mas o puro trânsito: agentes do tempo trajectório. É como quando, também, tomo por uma noite um quarto de hotel. Nunca deixa de povoar-me o carácter miniatural dos sabonetes oferecidos pela gerência, os frasquinhos de plástico que dizem “shampoo” e “gel” como as crias humanas dizem “papá” e “gelado”.
Também, ainda: toda a cidade me é a mesma. A que tem mar sobe a montanha, de que desço entre giestas para recolher a fantasmagoria paga a ouro e a metro quadrado dos iguais centros comerciais do Ocidente.
Sim, recolho, verifico, versifico. A empregadita do estaminé de sopas instantâneas; o poeta que evoca as oliveiras da terra onde nasceu; a inglesa casada com o autarca local; a grávida monofásica que fez um filho ao marido abstracto; o tractor cor-de-cereja no campo verde; o sábado; os homens-cantores; as operárias que vêm tomar a bica; os carros eléctricos transportando o tempo, o turismo, a cor amarela; a rima que denuncia a generosidade do idioma; a exclamação de toda a árvore; a água que exclama peixes vermelhos.
A economia e a finança, confesso-o sem embuço nem rebuço, não me são alheias – mas só por fora. Ainda hoje me achei perguntando: quanto dinheiro gerou e gera e gerará aquele sem-tostão correspondente comercial cujos nomes de dentro eram António e Nogueira, cujos extremos eram Pessoa e Fernando? Sorrio de lápis na mão.
Lá (cá) no fundo, não passo de um grilo falante do eixo Coimbra-Lisboa. Dou-me ao respeito, porém: li Teixeira de Pascoaes e Vitorino Nemésio e Carlos de Oliveira e Dylan Thomas.
Tenho escrito quando chove.
Já estive na Figueira da Foz. Já fui a Peniche. Andei à noite sozinho em Bruxelas. Já respirei em Trás-os-Montes.
Houve, mesmo, uma altura em que tive dólares. Foi no século passado. Eu ia com os dólares, o mundo franqueava-se-me. Derivei nesse limbo fácil, adquirindo algumas coisas que devo entretanto ter perdido, pois que nenhuma conservo ou, sequer, recordo.
Antes dos dólares, sedava-me a constância ciciada das palavras “açucena” e “cegarrega”. Foi cedo, na minha vida. Considerava já então, como hoje sigo aliás considerando, que a canícula das quintas senhoriais (com suas ínsuas, seus fornos da broa, seus currais prósperos) se condensava: açucenava-se, cegarregava-se. Era a porra da poesia: lei elemental e elementar.
Uma alegria, pequenina como um sabonete de hotel, subjaz a esta Carta do Armistício: é o que pude fruir, em trabalho, da vida que me coube e em que, bastas vezes, me parece nem caibo.
Só faço isso. Nada mais há que fazer.
Sirvo-me da poesia – sabendo que a sirvo. Não se trata de um sacerdócio. Não se trata de um martírio. Não é missão nem submissão. É uma aquiescência. Um beneplácito. E uma resignação, também.
Frequento pastelarias e casas de bifanas, cuja universalidade me é tão evidente quão a do parque, o parque construído de árvores, pássaros e peixes vermelhos (todos partilham a água, peixes, pássaros e árvores). Os internados do Lar não frequentam o parque. Preferem a pastelaria, a mesma que em minutos abandonarei para vir, aqui, escrever-vos esta carta. Enquanto não, ali, um homem lavado ingere um quartilho de água mineral em pleno armistício: o sábado.
Algo que me acode com grande ligeireza é a autoridade da desimportância. Terraplanada pela igual sucessão, a Coisa não tem importância. Assim é.
É como quando apanho o comboio. Fazendo-o, matriculo-me na dimensão paralela dos viajantes, esses seres-almas que não são corpo enquanto a viagem dura, mas o puro trânsito: agentes do tempo trajectório. É como quando, também, tomo por uma noite um quarto de hotel. Nunca deixa de povoar-me o carácter miniatural dos sabonetes oferecidos pela gerência, os frasquinhos de plástico que dizem “shampoo” e “gel” como as crias humanas dizem “papá” e “gelado”.
Também, ainda: toda a cidade me é a mesma. A que tem mar sobe a montanha, de que desço entre giestas para recolher a fantasmagoria paga a ouro e a metro quadrado dos iguais centros comerciais do Ocidente.
Sim, recolho, verifico, versifico. A empregadita do estaminé de sopas instantâneas; o poeta que evoca as oliveiras da terra onde nasceu; a inglesa casada com o autarca local; a grávida monofásica que fez um filho ao marido abstracto; o tractor cor-de-cereja no campo verde; o sábado; os homens-cantores; as operárias que vêm tomar a bica; os carros eléctricos transportando o tempo, o turismo, a cor amarela; a rima que denuncia a generosidade do idioma; a exclamação de toda a árvore; a água que exclama peixes vermelhos.
A economia e a finança, confesso-o sem embuço nem rebuço, não me são alheias – mas só por fora. Ainda hoje me achei perguntando: quanto dinheiro gerou e gera e gerará aquele sem-tostão correspondente comercial cujos nomes de dentro eram António e Nogueira, cujos extremos eram Pessoa e Fernando? Sorrio de lápis na mão.
Lá (cá) no fundo, não passo de um grilo falante do eixo Coimbra-Lisboa. Dou-me ao respeito, porém: li Teixeira de Pascoaes e Vitorino Nemésio e Carlos de Oliveira e Dylan Thomas.
Tenho escrito quando chove.
Já estive na Figueira da Foz. Já fui a Peniche. Andei à noite sozinho em Bruxelas. Já respirei em Trás-os-Montes.
Houve, mesmo, uma altura em que tive dólares. Foi no século passado. Eu ia com os dólares, o mundo franqueava-se-me. Derivei nesse limbo fácil, adquirindo algumas coisas que devo entretanto ter perdido, pois que nenhuma conservo ou, sequer, recordo.
Antes dos dólares, sedava-me a constância ciciada das palavras “açucena” e “cegarrega”. Foi cedo, na minha vida. Considerava já então, como hoje sigo aliás considerando, que a canícula das quintas senhoriais (com suas ínsuas, seus fornos da broa, seus currais prósperos) se condensava: açucenava-se, cegarregava-se. Era a porra da poesia: lei elemental e elementar.
Uma alegria, pequenina como um sabonete de hotel, subjaz a esta Carta do Armistício: é o que pude fruir, em trabalho, da vida que me coube e em que, bastas vezes, me parece nem caibo.
Carta: Caramulo, tarde de 19 de Maio de 2007
Fotografia: Caramulo, início da tarde de 20 de Maio de 2007
Fotografia: Caramulo, início da tarde de 20 de Maio de 2007
4 comentários:
Daniel, caro amigo!...
Que falta faz um livro teu, aqui e agora, neste "país possível" nosso e do Ruy Belo...mas que, creio bem, continuará a ignorar os seus poetas...
Que posso eu fazer?!...Que podemos nós fazer?!...
És (mesmo)uma alma de outro mundo. bj
O mundo parecerá sempre pequeno para alguém tão grandioso como o Daniel, para alguém assim: único, tão genial e brilhante como é. Seja sempre quem é! O livro de poesia aguarda-se. Bjx
Zé: o que podemos fazer, acho, é fazer. Continuar a. Não desistir.
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