Mal seguras as calças à cintura, camisola com arrepanho ascendente, vejo do homem pobre o elástico das cuecas cor-de-casca-de-ovo. Sabe ler. Abriu o jornal como a um mapa, por ele navega na calma grés da manhã. Outro homem em cena. Traz queijos para vender debaixo de um olhar de avô baleado pela Pátria.
Sonhei de mais. A noite traspassou-me. Fui poroso à insistência das imagens. Eu estava numa casa de madeira. Havia um fogão a lenha. Havia uma varanda de tábuas inaugurando o vale. Era possível sentir os lobos, o terror dos coelhos na clandestinidade, a passagem caligráfica do milhafre no circo de cinza. E era no inverno. A cabana fazia parte de uma aldeia toda de madeira. Havia um telefone que não tocava, estava ali como um vaso sem planta. Atrás da cabana, subindo um pouco, eu podia recordar o bar dos ingleses: jornais sem fotografias, cadeirões de couro, tabuleiros de xadrez sem xadrezistas. O barman era português do Minho. O casal proprietário era do Sussex. Se eu acordasse, poderia talvez subir ao bar, ler as letras miúdas dos jornais, trocar uma nostalgia com o barman de Monção.
Agora, outro homem. Sobrancelhas espessas como arbustos, olhar grave como uma jura. Saúda com gravidade e espessura. Retribuo. Toma o jornal que o homem pobre leu, ou navegou. É tudo tão bonito. Da cozinha, sai o patrão transportando um prato com duas peras amarelas e uma faca de cabo de madeira.
Na minha casa de madeira, eu lutava sem um gesto, lobo sem coelho nem desejo. No fogão, a lenha ardia como um trapo de ouro. Registei a possibilidade de não mais poder sair dali, nunca mais ir junto do minhoto que infundia chás para xadrezistas nenhuns, jamais dizer aos ingleses o que sabia de Phyllis Bentley e de Ferreira de Castro.
E no entanto o Tempo na noite não assassinava, antes permitia a véspera de outros homens, outros jornais, outras cuecas e sobrancelhas. O velho comeu as peras depois de lhes esfaquear a pele. Vi que parte do sumo lhe abordava os cantos da boca, arroiando depois pelas fissuras, as rugas, as comissuras do queixo velho.
Não assim os ingleses, que mastigavam a seco triângulos de pão com lâminas de pepino. Ela tomava colheradas de extracto de carne. Ele mordia goladas sólidas de gin. Assestavam ambos sobre a minha cabana e o vale o mesmo olhar cinzazul de exilados.
A manhã raspou-se de grés, acordei sem ter dormido: como se nascesse. Tacteei as calças como se procurasse pernas. Procurei água no cubículo cerâmico. Outra mesma noite me acudirá em breve, facto que não lamento tanto como não ter comprado um dos queijos daquele senhor.
Sonhei de mais. A noite traspassou-me. Fui poroso à insistência das imagens. Eu estava numa casa de madeira. Havia um fogão a lenha. Havia uma varanda de tábuas inaugurando o vale. Era possível sentir os lobos, o terror dos coelhos na clandestinidade, a passagem caligráfica do milhafre no circo de cinza. E era no inverno. A cabana fazia parte de uma aldeia toda de madeira. Havia um telefone que não tocava, estava ali como um vaso sem planta. Atrás da cabana, subindo um pouco, eu podia recordar o bar dos ingleses: jornais sem fotografias, cadeirões de couro, tabuleiros de xadrez sem xadrezistas. O barman era português do Minho. O casal proprietário era do Sussex. Se eu acordasse, poderia talvez subir ao bar, ler as letras miúdas dos jornais, trocar uma nostalgia com o barman de Monção.
Agora, outro homem. Sobrancelhas espessas como arbustos, olhar grave como uma jura. Saúda com gravidade e espessura. Retribuo. Toma o jornal que o homem pobre leu, ou navegou. É tudo tão bonito. Da cozinha, sai o patrão transportando um prato com duas peras amarelas e uma faca de cabo de madeira.
Na minha casa de madeira, eu lutava sem um gesto, lobo sem coelho nem desejo. No fogão, a lenha ardia como um trapo de ouro. Registei a possibilidade de não mais poder sair dali, nunca mais ir junto do minhoto que infundia chás para xadrezistas nenhuns, jamais dizer aos ingleses o que sabia de Phyllis Bentley e de Ferreira de Castro.
E no entanto o Tempo na noite não assassinava, antes permitia a véspera de outros homens, outros jornais, outras cuecas e sobrancelhas. O velho comeu as peras depois de lhes esfaquear a pele. Vi que parte do sumo lhe abordava os cantos da boca, arroiando depois pelas fissuras, as rugas, as comissuras do queixo velho.
Não assim os ingleses, que mastigavam a seco triângulos de pão com lâminas de pepino. Ela tomava colheradas de extracto de carne. Ele mordia goladas sólidas de gin. Assestavam ambos sobre a minha cabana e o vale o mesmo olhar cinzazul de exilados.
A manhã raspou-se de grés, acordei sem ter dormido: como se nascesse. Tacteei as calças como se procurasse pernas. Procurei água no cubículo cerâmico. Outra mesma noite me acudirá em breve, facto que não lamento tanto como não ter comprado um dos queijos daquele senhor.
Caramulo, Café Avenida, manhã de 1 de Agosto de 2006
4 comentários:
Não tenho palavras. Só sei dizer que gostei imenso de ter lido.
A Paula é uma querida, é o que é.
Não, não sou mesmo nada querida. Alguém me chamou a atenção para te visitar e torna-se um exercício de inteligência para mim, tentar compreender as tuas palavras. O que não sei se acontece ou não algumas vezes. Mas querida não sou mesmo nada. Mas obrigada pelo adjectivo.
Mas que chateza pseudo literária !
Ó Paulinha, a menina é tão "poética" e o seu admirado Daniel Abrunhosa... também !?...
Enviar um comentário