30/08/2006

The Psychedelic Furs Atacam na Figueira da Foz

Num destes dois invernos foi: 1987 ou 1989.
Ao contrário do inverno, tenho a certeza do sítio: era na Figueira da Foz, a mais bela cidade do mundo.
Do meu mundo.
Já então eu anoitecia gravemente.
Uma noite, fui a um bar a cujo balcão pontificava um homem chamado Gervásio.
Passavam vídeos para dar à coisa um ambiente.
Level 42, Men without Hats, Living in a Box, filarmónicas dessas.
A minha vida suspendeu-se quando passaram The Psychedelic Furs.
Apercebi-me logo da perfeição do momento.
O cantor olhava-se, a um espelho de camarim, numa manhã de Agosto de 2006.
Eu tinha tão pouca idade, que lembrava o mesmo.
Tudo o que comecei, fi-lo cedo.
Tudo o que acabei, acabei-o mais cedo ainda.
Eu tinha uma morte no cadastro.
Levava-a comigo para todo o lado, sobretudo a sítios garantidos por homens-gervásios.
Da sala de entrada, descia-se por três degraus para um reservado.
A uma dessas mesas, um gajo e duas gajas mantinham um pequeno comércio estupefaciente.
Seriam da minha idade.
Paguei-lhes três, quatro rodadas.
Depois, mais duas, três.
Entorpeci-lhes, sem querer, o comércio.
O tipo tornou-se gentil.
Que, se eu quisesse, me não faltaria nada, nunca, na vida.
Ele queria dizer – na noite.
Mas disse – na vida.
Isto demonstra a loucura da gentileza.
Uma das gajas aluiu de gin como uma pilha de roupa.
A outra pôs-se-me ondulante como uma medusa.
Disse-me assim a boca tónica dela:
– Se eu quisesse, comia-te.
Disse-lhe eu assim:
– Se me comeres, depois tens de me cagar.
O tipo desatou-se a rir.
Ela, nem tanto.
O bar só devia ter uma cassete, porque passado um bocado o cantor tinha voltado ao camarim.
O tipo teve de arrastar embora as duas gajas.
Eu fiquei na minha glória.
Tropecei de música (e de glória) até ao balcão, onde Gervásio, sorrindo sempre, controlava a indústria.
O relógio rarefizera a clientela.
Sobravam alguns espécimenes quarentões.
Eles, hoje, havendo sobrevivido a tanta curtição de psicadélicas peles, terão sessentas e tais.
Isso é estranho, isso é assim.
Uma das possibilidades é nunca me ter vindo embora.
Outra é recordar o regresso.
Só não posso determinar o aonde de qual regresso.
Eu acho que ando a fazer como o cantor.
Que o inverno, não importa o ano, é um camarim a que se acede por três degraus, descendo sempre.




Caramulo, manhã de 30 de Agosto de 2006

6 comentários:

Anónimo disse...

bonito.

Paula Sofia

Maria Carvalho disse...

É isso mesmo! Fantástico. Adorei. Começo a repetir-me um bocado demais. Mas eu sou exagerada mesmo. Em tudo.

Daniel Abrunheiro disse...

eu também exagero o meu bocadito.

Maria Carvalho disse...

Eu sei.

Anónimo disse...

Tem passagens sublimes, como de costume. Como vivem os que não exageram?

Mónica (em Campanhã) disse...

vim no trilho dos Psychadelic Furs e gostei muito do que li.

Canzoada Assaltante