HSC, 5 de Novembro de 2005, sábado, 8h59
O Artistonitólogo celebra em silêncio-só-conseus-botões uma noite bem dormida – de cabo-a-rabo, de fio-a-pavio. E mais: manhãzinha muito cedo, um céu sem um nuvem e com um sol. Passam hoje nove meses certinhos sobre o primeiro internamento do Ornitartistoólatra neste mesmo Pavilhão 3. Copo vazio, copo cheio. Rei morto, rei ressacado. Daria para ter concebido um bebé novo. Deu para isto – um ano novo tornado velho, um livro escrito e terminado (O Preço da Chuva, a sair nos princípios de 2006, talvez, na editora conimbricense Pé de Página). Daqui a pouco, pequeno-almoço. Depois, um cigarro, uma ida à cafetaria dos doentes (ornitólogos, hipólogos, cocólogos e demais fauna de neurónios escaqueirados). Viva a vida!
Mesmo dia, 13h55
De manhã, no regresso da cafetaria, o enfermeiro P. e o grupo de pijamas conversam sobre “juizinho”: não beber, não drogar, poupar dinheiro, ganhar saúde. Tudo sem grandes moralismos. Tudo em sossego, com o estômago e a boca acalentados pelo copo de café. Às tantas, F. sai-se com esta:
– Um vizinho meu deixou de fumar e começou a pôr num jarro as moedas que gastaria se ainda fumasse. Poupou poupou poupou até que comprou uma casa. Vai daí um dia a casa ardeu. Claro, aquele dinheiro já era p’ra queimar…
Os pijamas, enfermeiro incluído, riem-se. É história forjada, mas dá para a risota. Um dos nossos, menos dados a subtilezas anedóticas, ainda protesta:
– Mas isso é história!
– Claro que é! E depois? – contestamos todos.
E assim arde o Tempo. O enfermeiro P., bom rapaz (22 anos, só) ligou o computador portátil dele ao televisor (que é novo, não já a velharia chuvosa de fevereiro) para que possamos ver um filme em dêvêdê: Samuel L. Jackson, Peter Strauss, Willem Dafoe etc. Uma coisa cheia de (d)efeitos especiais. Assim chegamos ao almoço, cuja atracção principal é o empadão de atum. Mais pão, alface, maçã e água. A Benfica lamberá uma boa porção das sobras. E sombras faz a luz. O céu continua lavado como uma prata azul. Os eucaliptos e os cedros pintam-se a si mesmos em gravuras de cinco/seis metros de altura. Minutos para a ida da tarde à cafetaria. Continuo a ouvir os outros.
Mesma tarde, 14h43
No regresso do café da tarde, ainda com a bonomia tutelar do enfermeiro P. (jovem, calmo, humano), conversa sobre mezinhas e curandices populares. Por exemplo, a história de J., tóxico das Fontainhas (Matosinhos, Porto). Parece que teve papeira em pequenino. E a quem os hospitais com nomes de santos (António, João) terão sido incapazes de debelar a moléstia. O remédio santo ter-lhe-á chegado do próprio avô. “O Velho sabia Coisas”, garantiu J. Madrugada cedinha, mandava-lhe para dentro com broa de milho e aguardente (lhe a ele, avô). E assim passou além do Bojador dos 90 e tal anos de vida. Curou, parece, a papeira ao netinho mandando-o deitar, pondo-lhe em cima a canga do boi e botando umas rezas. A papeira de J. bateu em retirada. Maravilhas da tecnologia antiga. Não da tanga, mas da canga. Eu mandei, a propósito, uma piada:
– Comigo foi ao contrário. Tive a papeira em pequeno, mas só em grande é que me puseram a canga.
Os pijamas, enfermeiro incluído, riram-se. Chegámos todos sãos e salvos à Base de Ornitologia – Pavilhão 3. Seguiu-se o dêvêdê do Homem-Aranha.
Mesma tarde, 17h00
Um dos ornitalcoólogos borrou-se todo na sanita mais próxima da porta. Eu tinha ido dar cabo do meu mijo quando o fedor (que não Dostoievsky) me chegou pelo alto do muro comum que divide as duas retretes. Em aura cristiana, alertei a auxiliar L. para o cacacontecido. A senhora lá tratou do merdassunto. Li mais uma história da Highsmith, embora me não apetecesse por aí além. Já li muito melhor, sem comparação possível, embora aqui o tenha comparado, dela. Os outros livros estão guardados no saco, a que por enquanto não tenho acesso. Agora, é hora de cafetaria. Somos quatro, escoltados por L., uma enfermeira baixinha e gentil.
Anoitecer, 17h56
Dois assaltos bastaram. No café pós-almoço, J. assediou a empregadita da cafetaria com um “Dá-me o teu coração!”. E, bem-parecido, com barba no rosto de não aparentes apenas 22 anos, acrescentou:
– O bolo…
O bolo (o coração) era um palmiê. Os olhos da rapariga riram-se com aquela volúpia resinosa de fêmea cortejada. Poucas horas depois, no café pós-merenda, ela já lhe sorria um sorriso ímpar. J. acaba de me mostrar um papel com o número de telemóvel autografado a esferográfica azul pela moça. Todos os pobres de Deus escrevem a esferográfica azul. J. garante-me que não troca a “mulher” dele (a namorada, mas ele diz mulher com aspas para que eu sinta a seriedade de uma relação com cinco anos) por nada. É uma mulher do Norte, carago.
– Mas era gajo para cá vir abaixo a Coimbra dar uma volta a isto…
Não virá, claro que não. Já tomou duas porções do medicamento antagonista (ele não é orni, é hipo), sente-se mais lavado dos fumos da heroína e vai partir, 2ª, com o pai, para Bilbau, onde trabalham ambos. Mas tudo isto me rende um episódio precioso para o diário do segundo internamento. É uma não-história, mais bem dizendo, mas é das boas. Outras não-histórias vivas correm pelas alamedas e azinhagas do hospital psiquiátrico: são os internados vitalícios, trôpegos de pernas, pedintes manuais de cigarros e moedas para café; pássaros coxos, partidos bonecos vagamente humanos articulados por invisível ventríloquo – assim me semelham. Cristãos sem Cristo, loucos sem cura. Dormem ao lado, no Pavilhão 2.
O Artistonitólogo celebra em silêncio-só-conseus-botões uma noite bem dormida – de cabo-a-rabo, de fio-a-pavio. E mais: manhãzinha muito cedo, um céu sem um nuvem e com um sol. Passam hoje nove meses certinhos sobre o primeiro internamento do Ornitartistoólatra neste mesmo Pavilhão 3. Copo vazio, copo cheio. Rei morto, rei ressacado. Daria para ter concebido um bebé novo. Deu para isto – um ano novo tornado velho, um livro escrito e terminado (O Preço da Chuva, a sair nos princípios de 2006, talvez, na editora conimbricense Pé de Página). Daqui a pouco, pequeno-almoço. Depois, um cigarro, uma ida à cafetaria dos doentes (ornitólogos, hipólogos, cocólogos e demais fauna de neurónios escaqueirados). Viva a vida!
Mesmo dia, 13h55
De manhã, no regresso da cafetaria, o enfermeiro P. e o grupo de pijamas conversam sobre “juizinho”: não beber, não drogar, poupar dinheiro, ganhar saúde. Tudo sem grandes moralismos. Tudo em sossego, com o estômago e a boca acalentados pelo copo de café. Às tantas, F. sai-se com esta:
– Um vizinho meu deixou de fumar e começou a pôr num jarro as moedas que gastaria se ainda fumasse. Poupou poupou poupou até que comprou uma casa. Vai daí um dia a casa ardeu. Claro, aquele dinheiro já era p’ra queimar…
Os pijamas, enfermeiro incluído, riem-se. É história forjada, mas dá para a risota. Um dos nossos, menos dados a subtilezas anedóticas, ainda protesta:
– Mas isso é história!
– Claro que é! E depois? – contestamos todos.
E assim arde o Tempo. O enfermeiro P., bom rapaz (22 anos, só) ligou o computador portátil dele ao televisor (que é novo, não já a velharia chuvosa de fevereiro) para que possamos ver um filme em dêvêdê: Samuel L. Jackson, Peter Strauss, Willem Dafoe etc. Uma coisa cheia de (d)efeitos especiais. Assim chegamos ao almoço, cuja atracção principal é o empadão de atum. Mais pão, alface, maçã e água. A Benfica lamberá uma boa porção das sobras. E sombras faz a luz. O céu continua lavado como uma prata azul. Os eucaliptos e os cedros pintam-se a si mesmos em gravuras de cinco/seis metros de altura. Minutos para a ida da tarde à cafetaria. Continuo a ouvir os outros.
Mesma tarde, 14h43
No regresso do café da tarde, ainda com a bonomia tutelar do enfermeiro P. (jovem, calmo, humano), conversa sobre mezinhas e curandices populares. Por exemplo, a história de J., tóxico das Fontainhas (Matosinhos, Porto). Parece que teve papeira em pequenino. E a quem os hospitais com nomes de santos (António, João) terão sido incapazes de debelar a moléstia. O remédio santo ter-lhe-á chegado do próprio avô. “O Velho sabia Coisas”, garantiu J. Madrugada cedinha, mandava-lhe para dentro com broa de milho e aguardente (lhe a ele, avô). E assim passou além do Bojador dos 90 e tal anos de vida. Curou, parece, a papeira ao netinho mandando-o deitar, pondo-lhe em cima a canga do boi e botando umas rezas. A papeira de J. bateu em retirada. Maravilhas da tecnologia antiga. Não da tanga, mas da canga. Eu mandei, a propósito, uma piada:
– Comigo foi ao contrário. Tive a papeira em pequeno, mas só em grande é que me puseram a canga.
Os pijamas, enfermeiro incluído, riram-se. Chegámos todos sãos e salvos à Base de Ornitologia – Pavilhão 3. Seguiu-se o dêvêdê do Homem-Aranha.
Mesma tarde, 17h00
Um dos ornitalcoólogos borrou-se todo na sanita mais próxima da porta. Eu tinha ido dar cabo do meu mijo quando o fedor (que não Dostoievsky) me chegou pelo alto do muro comum que divide as duas retretes. Em aura cristiana, alertei a auxiliar L. para o cacacontecido. A senhora lá tratou do merdassunto. Li mais uma história da Highsmith, embora me não apetecesse por aí além. Já li muito melhor, sem comparação possível, embora aqui o tenha comparado, dela. Os outros livros estão guardados no saco, a que por enquanto não tenho acesso. Agora, é hora de cafetaria. Somos quatro, escoltados por L., uma enfermeira baixinha e gentil.
Anoitecer, 17h56
Dois assaltos bastaram. No café pós-almoço, J. assediou a empregadita da cafetaria com um “Dá-me o teu coração!”. E, bem-parecido, com barba no rosto de não aparentes apenas 22 anos, acrescentou:
– O bolo…
O bolo (o coração) era um palmiê. Os olhos da rapariga riram-se com aquela volúpia resinosa de fêmea cortejada. Poucas horas depois, no café pós-merenda, ela já lhe sorria um sorriso ímpar. J. acaba de me mostrar um papel com o número de telemóvel autografado a esferográfica azul pela moça. Todos os pobres de Deus escrevem a esferográfica azul. J. garante-me que não troca a “mulher” dele (a namorada, mas ele diz mulher com aspas para que eu sinta a seriedade de uma relação com cinco anos) por nada. É uma mulher do Norte, carago.
– Mas era gajo para cá vir abaixo a Coimbra dar uma volta a isto…
Não virá, claro que não. Já tomou duas porções do medicamento antagonista (ele não é orni, é hipo), sente-se mais lavado dos fumos da heroína e vai partir, 2ª, com o pai, para Bilbau, onde trabalham ambos. Mas tudo isto me rende um episódio precioso para o diário do segundo internamento. É uma não-história, mais bem dizendo, mas é das boas. Outras não-histórias vivas correm pelas alamedas e azinhagas do hospital psiquiátrico: são os internados vitalícios, trôpegos de pernas, pedintes manuais de cigarros e moedas para café; pássaros coxos, partidos bonecos vagamente humanos articulados por invisível ventríloquo – assim me semelham. Cristãos sem Cristo, loucos sem cura. Dormem ao lado, no Pavilhão 2.
4 comentários:
ÉS DEFINITIVAMENTE UM GRANDE ESCRITOR. DOS MELHORES DE SEMPRE.
EXAGERO? NÃO!!!!!!
exagero, claro. mas agradeço, claro. vou já ali beber um copo para celebrar. d'água, claro.
Olha, um anónimo que descobriu a pólvora...
Claro que descobri ó anónimo!
Bem sabes que não de pólvora seca!
Enviar um comentário