22/11/2005

O Cedro e a Lua - III - 5 de Novembro de 2005

HSC, 5 de Novembro de 2005, sábado, 8h59

O Artistonitólogo celebra em silêncio-só-conseus-botões uma noite bem dormida – de cabo-a-rabo, de fio-a-pavio. E mais: manhãzinha muito cedo, um céu sem um nuvem e com um sol. Passam hoje nove meses certinhos sobre o primeiro internamento do Ornitartistoólatra neste mesmo Pavilhão 3. Copo vazio, copo cheio. Rei morto, rei ressacado. Daria para ter concebido um bebé novo. Deu para isto – um ano novo tornado velho, um livro escrito e terminado (O Preço da Chuva, a sair nos princípios de 2006, talvez, na editora conimbricense Pé de Página). Daqui a pouco, pequeno-almoço. Depois, um cigarro, uma ida à cafetaria dos doentes (ornitólogos, hipólogos, cocólogos e demais fauna de neurónios escaqueirados). Viva a vida!

Mesmo dia, 13h55

De manhã, no regresso da cafetaria, o enfermeiro P. e o grupo de pijamas conversam sobre “juizinho”: não beber, não drogar, poupar dinheiro, ganhar saúde. Tudo sem grandes moralismos. Tudo em sossego, com o estômago e a boca acalentados pelo copo de café. Às tantas, F. sai-se com esta:
– Um vizinho meu deixou de fumar e começou a pôr num jarro as moedas que gastaria se ainda fumasse. Poupou poupou poupou até que comprou uma casa. Vai daí um dia a casa ardeu. Claro, aquele dinheiro já era p’ra queimar…
Os pijamas, enfermeiro incluído, riem-se. É história forjada, mas dá para a risota. Um dos nossos, menos dados a subtilezas anedóticas, ainda protesta:
– Mas isso é história!
– Claro que é! E depois? – contestamos todos.
E assim arde o Tempo. O enfermeiro P., bom rapaz (22 anos, só) ligou o computador portátil dele ao televisor (que é novo, não já a velharia chuvosa de fevereiro) para que possamos ver um filme em dêvêdê: Samuel L. Jackson, Peter Strauss, Willem Dafoe etc. Uma coisa cheia de (d)efeitos especiais. Assim chegamos ao almoço, cuja atracção principal é o empadão de atum. Mais pão, alface, maçã e água. A Benfica lamberá uma boa porção das sobras. E sombras faz a luz. O céu continua lavado como uma prata azul. Os eucaliptos e os cedros pintam-se a si mesmos em gravuras de cinco/seis metros de altura. Minutos para a ida da tarde à cafetaria. Continuo a ouvir os outros.

Mesma tarde, 14h43

No regresso do café da tarde, ainda com a bonomia tutelar do enfermeiro P. (jovem, calmo, humano), conversa sobre mezinhas e curandices populares. Por exemplo, a história de J., tóxico das Fontainhas (Matosinhos, Porto). Parece que teve papeira em pequenino. E a quem os hospitais com nomes de santos (António, João) terão sido incapazes de debelar a moléstia. O remédio santo ter-lhe-á chegado do próprio avô. “O Velho sabia Coisas”, garantiu J. Madrugada cedinha, mandava-lhe para dentro com broa de milho e aguardente (lhe a ele, avô). E assim passou além do Bojador dos 90 e tal anos de vida. Curou, parece, a papeira ao netinho mandando-o deitar, pondo-lhe em cima a canga do boi e botando umas rezas. A papeira de J. bateu em retirada. Maravilhas da tecnologia antiga. Não da tanga, mas da canga. Eu mandei, a propósito, uma piada:
– Comigo foi ao contrário. Tive a papeira em pequeno, mas só em grande é que me puseram a canga.
Os pijamas, enfermeiro incluído, riram-se. Chegámos todos sãos e salvos à Base de Ornitologia – Pavilhão 3. Seguiu-se o dêvêdê do Homem-Aranha.

Mesma tarde, 17h00

Um dos ornitalcoólogos borrou-se todo na sanita mais próxima da porta. Eu tinha ido dar cabo do meu mijo quando o fedor (que não Dostoievsky) me chegou pelo alto do muro comum que divide as duas retretes. Em aura cristiana, alertei a auxiliar L. para o cacacontecido. A senhora lá tratou do merdassunto. Li mais uma história da Highsmith, embora me não apetecesse por aí além. Já li muito melhor, sem comparação possível, embora aqui o tenha comparado, dela. Os outros livros estão guardados no saco, a que por enquanto não tenho acesso. Agora, é hora de cafetaria. Somos quatro, escoltados por L., uma enfermeira baixinha e gentil.

Anoitecer, 17h56

Dois assaltos bastaram. No café pós-almoço, J. assediou a empregadita da cafetaria com um “Dá-me o teu coração!”. E, bem-parecido, com barba no rosto de não aparentes apenas 22 anos, acrescentou:
– O bolo…
O bolo (o coração) era um palmiê. Os olhos da rapariga riram-se com aquela volúpia resinosa de fêmea cortejada. Poucas horas depois, no café pós-merenda, ela já lhe sorria um sorriso ímpar. J. acaba de me mostrar um papel com o número de telemóvel autografado a esferográfica azul pela moça. Todos os pobres de Deus escrevem a esferográfica azul. J. garante-me que não troca a “mulher” dele (a namorada, mas ele diz mulher com aspas para que eu sinta a seriedade de uma relação com cinco anos) por nada. É uma mulher do Norte, carago.
– Mas era gajo para cá vir abaixo a Coimbra dar uma volta a isto…
Não virá, claro que não. Já tomou duas porções do medicamento antagonista (ele não é orni, é hipo), sente-se mais lavado dos fumos da heroína e vai partir, 2ª, com o pai, para Bilbau, onde trabalham ambos. Mas tudo isto me rende um episódio precioso para o diário do segundo internamento. É uma não-história, mais bem dizendo, mas é das boas. Outras não-histórias vivas correm pelas alamedas e azinhagas do hospital psiquiátrico: são os internados vitalícios, trôpegos de pernas, pedintes manuais de cigarros e moedas para café; pássaros coxos, partidos bonecos vagamente humanos articulados por invisível ventríloquo – assim me semelham. Cristãos sem Cristo, loucos sem cura. Dormem ao lado, no Pavilhão 2.

4 comentários:

Anónimo disse...

ÉS DEFINITIVAMENTE UM GRANDE ESCRITOR. DOS MELHORES DE SEMPRE.

EXAGERO? NÃO!!!!!!

Daniel Abrunheiro disse...

exagero, claro. mas agradeço, claro. vou já ali beber um copo para celebrar. d'água, claro.

Anónimo disse...

Olha, um anónimo que descobriu a pólvora...

Anónimo disse...

Claro que descobri ó anónimo!

Bem sabes que não de pólvora seca!

Canzoada Assaltante